CINEMA
Por Clodoaldo Lino
Dando continuidade a lista de filmes que me chamaram a atenção na última década, elenco mais sete filmes, partindo do mesmo princípio dos anteriores, isto é, filmes que acabaram passando despercebidos no circuito comercial. São eles:
Abismo Tropical [2019] – Documentário do diretor paraibano Paulo Caldas que registra o movimento na av. Paulista no dia 28 de outubro de 2018, dia da fatídica eleição de Jair M. à Presidência da República do Brasil. Durante 24 horas (de meia-noite a meia-noite) duas equipes de filmagem registraram a movimentação dos apoiadores do candidato que viria a ser eleito e das demais pessoas que transitavam pelo local, tais como ambulantes e moradores de rua. O filme assume um clima de crônica autobiográfica, com Paulo narrando suas preocupações com o futuro do país, ao mesmo tempo em que intercala passagens de suas lembranças pessoais. As experimentações de linguagem reforçam ainda mais esse caráter fortemente pessoal. Filmado em preto e branco, com todos os planos sendo exibidos em câmera lenta e o som alternando entre silêncios e distorções, o resultado é um clima muitas vezes semelhante ao de um sonho, um sonho ruim. O filme é um dos relatos mais interessantes desse momento atual da sociedade brasileira, misturando o documental e o poético a partir de um inegável sentimento de angústia em relação ao destino do Brasil. Algumas sequências trazem imagens altamente significativas, como a de crianças socando o boneco do ex-presidente Lula, para regozijo de seus pais, ou a de um apoiador do candidato eleito, vestindo terno e gravata, com uma máscara de Donald Trump, segurando uma bandeira do Brasil, simbolicamente, de cabeça para baixo. Um filme indispensável nos dias de hoje.
Sem Deus (Bezbog) [2016] – Primeiro longa-metragem da jovem diretora búlgara Ralitza Petrova, o filme é um verdadeiro soco na boca do estômago. Sem Deus narra a história de Gana, uma enfermeira que cuida de idosos senis e que rouba a carteira de identidade deles para, junto com o seu namorado, um mecânico de automóveis, vendê-las para o crime organizado. Com a história ambientada numa pequena cidade da Bulgária pós-bloco soviético, absolutamente tudo no filme remete a pequeneza moral e a sordidez da vida contemporânea. Nada na existência de Gana escapa a aridez, seja a sua infância, a sua relação com a mãe (com quem divide o apartamento), a convivência com o namorado (aonde qualquer tipo de atração é inexistente), no trato indiferente com seus pacientes etc. O grande mérito de Petrova enquanto diretora é que a construção desse ambiente, em que empatia e sentimentos estão totalmente ausentes em uma sociedade corrupta e vulgar, é perfeitamente designada pelo uso dos elementos cinematográficos, do roteiro a escolha dos atores, passando pelos diálogos, pelos cenários, pela fotografia e pela condução das atuações. Em resumo, o filme não oferece nenhum respiro, nenhuma possibilidade de redenção, seja na condução da história, seja na estética assumida. Na verdade, há um momento em que a total falta de sensibilidade de Gana é tocada por um dos seus pacientes, um velho maestro que ainda mantém um pequeno coral à capela, mas, no final das contas, essa pequena concessão, longe de apontar para um possível desenrolar piegas, acaba servindo para amplificar ainda mais a sensação de modorra que permeia o filme como um todo. Um filme muito duro, cru, mas que, apesar das distâncias culturais e geográficas, acaba, tristemente, reverberando com o estágio atual da sociedade brasileira.
A Morte de Luís XIV (La Mort de Louis XIV) [2016] – Filme do enfant terrible catalão Albert Serra, que encena os últimos dias da vida de Luís XIV, o rei-Sol, monarca mais longevo do mundo ocidental. Os filmes de Serra são, geralmente, herméticos e taxados, de forma pejorativa, de “filmes para festivais”, devido às peripécias narrativas e estéticas. A Morte de Luís XIV foge desse esteriótipo e o filme, sem deixar de ser denso, evita os excessos desnecessários. Vários aspectos presentes no filme poderiam ser destacados para sublinhar o contraponto fundamental dessa obra de Serra, qual seja, o transcurso entre o esplendor da vida, representado pela riqueza e a opulência do poder, e a deterioração que acompanha a morte, simbolizada na ferida putrefata da perna gangrenada do monarca. Filmado com uma luz tênue que se assemelha a luminosidade de velas, os quadros tem uma composição no estilo tableau vivant, com os planos reproduzindo o arranjo, as cores e a luz das pinturas da época, realçando fortemente o contraste dessa situação limite que envolve o fim de uma vida e, no caso de Luís XIV, o fim de uma era. Restrito ao quarto do rei e a alguns poucos planos nos cômodos ao redor, o filme tem no arranjo do cenário, do figurino e dos objetos de cena um importante elemento na significação desse confronto com a morte que se aproxima, em discrepância com a manutenção do cerimonial que envolve os rituais da nobreza (em um plano rico em símbolos, o rei tem dificuldade em erguer a pesada taça de cristal na qual é sempre servido). Outro destaque é o desenho de som, com o barulho do relógio e o zumbido de moscas, por exemplo, pontuando, constantemente, o fim inevitável. E, claro, é impossível não citar a atuação de Jean-Pierre Léaud (ator-fetiche de François Truffaut), que corporifica magistralmente a tensão entre o absolutismo e o declínio.
Bait [2019] – Primeiro longa-metragem do britânico Mark Jenkin, Bait é, antes de tudo, um grande “exercício de estilo”. A história gira em torno de uma pequena vila de pescadores que tem que lidar com a gentrificação e, consequentemente, com as inevitáveis mudanças no estilo de vida, ressaltando a luta do pescador Martin Ward para se manter íntegro aos seus valores. Uma verdadeira metáfora do processo de realização do filme, que teve uma produção totalmente artesanal, em detrimento do avanço cada vez mais vertiginoso do digital. Bait foi rodado com uma câmera Bolex de 16mm e com rolos de filme Kodak em preto e branco, processados manualmente por Jenkin. Filmado sem som, com diálogos e efeitos sonoros sendo adicionados posteriormente pelo próprio Jenkin, o resultado acaba sendo bem curioso, especialmente no que diz respeito aos diálogos, que assumem um ar de dublagem antiga, tornando o inglês uma “língua estrangeira”. A utilização de todos esses recursos faz o filme adquirir uma estética retrô altamente sedutora, com planos curtos (até pelas características técnicas da Bolex utilizada), abusando dos close-ups, o que acaba remetendo, em certos detalhes, às produções de Robert Flaherty e da vanguarda soviética dos anos 1920 (nesse último caso, especificamente, na montagem). Para quem se interessa pelo “fazer” cinematográfico, o filme é uma delícia, uma verdadeira aula.
Onírica (Field of Dogs) [2014] – Lech Majewski é um pintor, poeta, diretor de teatro e cineasta polonês que tem no currículo filmes muito interessantes, todos com uma pegada experimental, tais como Glass Lips, composto da edição de 33 curtas que faziam parte de uma instalação exibida no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, em 2006; ou, The Garden of Earthly Delights, filmado integralmente com uma handycam (ambos altamente recomendáveis). Onírica foi seu primeiro filme com uma cara de longa-metragem mais tradicional, mas que nem por isso abandona o rigor estético e intelectual dos seus trabalhos anteriores, pelo contrário. A história, centrada no personagem Adam, professor de literatura que ao ter seus entes mais próximos mortos num acidente de carro, abandona a vida acadêmica e vai trabalhar como caixa de supermercado, é ao mesmo tempo um ensaio poético e filosófico sobre a morte. No caso de Onírica, o roteiro é pautado a partir da obsessão de Adam pela Divina Comédia, de Dante Alighieri, com algumas pitadas da filosofia de Martin Heidegger. Num primeiro momento, uma afirmação como essa pode sugerir algo pretensioso e pedante, mas as incursões intelectuais do roteiro não soam superficiais, nem arrogantes, formando um bloco conciso e inteligentemente complexo com a composição visual. Os trabalhos de Majewski investem, simultaneamente, tanto no apuro visual, quanto no intelectual, sendo esse aspecto um dos pontos fortes do diretor, graças a sua formação de poeta e pintor. Certos planos são magníficos, unindo o conteúdo e a organização visual de forma arrebatadora. Eu, particularmente, destaco o plano do arado puxado por um boi, rasgando o corredor de um supermercado, uma imagem com um poder de síntese deslumbrante.
O Pássaro Pintado (Nabarvené ptáče) [2019] – Baseado no romance The Painted Bird, de Jerzy Kosiński, o filme do diretor tcheco Václav Marhoul narra as desventuras de um garoto judeu que é deixado pelos pais na casa da avó, no campo, para escapar das mazelas da Segunda Guerra Mundial, mas que, após a morte repentina da avó, acaba perambulando sozinho pelo Leste Europeu, vendo e sofrendo as mais variadas atrocidades. Os acontecimentos da Segunda Guerra servem, na verdade, de pano de fundo para expor de forma inclemente a crueldade das relações humanas. O filme é áspero, provocando reações conflitantes nos espectadores (era comum as sessões terminarem com menos da metade do público inicial nos festivais aonde o filme foi exibido), uma vez que as cenas são muito fortes, mas ao mesmo tempo são primorosamente executadas. O visual é estonteante, com uma composição rigorosa dos planos. Todos os aspectos da fotografia são envolventes, dos enquadramentos a iluminação, passando pelo cenário, figurino e objetos de cena. Mesmo frente às situações terríveis pelas quais o garoto passa, é difícil desviar os olhos da tela. O filme foi, muitas vezes, criticado pelos excessos, sendo acusado de abusar da violência de uma maneira injustificada. Difícil cravar um veredicto, isso depende muito da interpretação do espectador frente à proposta do diretor, ou seja, se o espectador aceita a “provocação” como algo que estimula a reflexão, ou se a ojeriza causada pelas imagens acaba tendo um efeito de torpor. Confesso que quando assisti, a primeira sensação que o filme me induziu foi de que era excessivamente longo (2h 49min). Mas não pretendo tirar essa dúvida assistindo o filme de novo, pelo menos não tão cedo.
White Riot [2019] – Terminamos essa lista com mais um primeiro longa-metragem, de mais uma jovem diretora, no caso, a britânica Rubika Shah. White Riot é um documentário que aborda o movimento Rock Against Racism, criado em Londres, no ano de 1976, para combater o crescimento do National Front, organização de extrema-direita que reunia fascistas, racistas e supremacistas brancos, e que ganhava cada vez mais visibilidade na época, inclusive com o apoio de certas autoridades e pop-stars britânicos. Intercalando depoimentos atuais dos fundadores do RAR e de artistas que participaram do movimento, com uma colagem de imagens da década de 1970, tais como cenas de protestos, matérias de jornais grifadas a mão, trechos do fanzine Temporary Hoarding, publicado pelo RAR, além de alguns grafismos animados, o filme abraça a estética punk do cut-and-paste (corta e cola), muito em voga naquele período. O ponto forte do documentário é o registro do concerto gratuito Carnival Against the Nazis, realizado em abril de 1978, no Victoria Park, e que contou com a participação de várias bandas oriundas do punk, da new wave e de estilos multiculturais que despontavam na metade da década, como o reggae e o ska. O destaque fica por conta da apresentação do legendário The Clash, com o vocalista Joe Strummer. Para quem já passou dos 55 anos (como eu), um deleite nostálgico, para os mais jovens, um documento histórico.
Muitos outros filmes poderiam ser citados, afinal estamos abordando a produção de uma década inteira, contudo, ao elaborar essa lista, estabeleci como critério colocar os filmes que primeiro me viessem à cabeça e o resultado foram esses 14, que apresentei de forma breve nesses dois textos. Desde os meados dos anos de 1980 que as previsões sobre “a morte do cinema” se multiplicam, mas pelo menos nessa última década essas previsões estiveram longe de serem confirmadas. O aparecimento de jovens diretores talentosos renovou vigorosamente a força do “pensamento-cinema”. Que a década de 2020 comece!