Dois eventos geraram grande interesse e solidariedade global nos últimos dias de dezembro de 2020. Um tribunal, na Arábia Saudita, sentenciou a ativista Loujain Al-Hathloul a cinco anos e oito meses de prisão, por apoiar publicamente o direito das mulheres de conduzirem veículos. Nicholas Opiyo, advogado ugandense de direitos humanos e também defensor de membros da comunidade LGBTQI que sofrem perseguição e de opositores políticos do presidente, foi detido de maneira arbitrária, com acusações forjadas de “lavagem de dinheiro”. Opiyo foi liberado sob fiança no dia 30 de dezembro, logo depois de uma enxurrada de manifestações mundiais por justiça em apoio ao seu ativismo. No momento da entrega do veredito de Loujain Al-Hathloul, o tribunal suspendeu, parcialmente, sua sentença, o que aumentou a esperança de que ela poderia ser libertada da prisão no prazo de alguns meses, devido ao tempo já cumprido.
Enquanto esperamos a libertação de Loujain Al-Hathloul e um fim ao assédio judicial de Nicholas Opiyo, é digno de nota que suas lutas por justiça não sejam muito diferentes das de Sudha Bharadwaj, secretária geral e voz da consciência da União Popular pela Liberdade Civil, em Chhattisgarh, Índia, ou das de Teresita Naul, ativista de 63 anos comprometida com os serviços sociais e de saúde nas Filipinas. Em Honduras, a organização Guapinol Water Defenders, que denuncia atividades de mineração perigosas, deveria estar recebendo um prêmio nacional. Em vez disso, seus defensores estão apodrecendo na cadeia, da mesma maneira que a ativista nicaraguense pela justiça econômica, Maria Esperanza Sanchez Garcia, e seus colegas defensores dos direitos humanos citados acima.
É uma maldição que, em pleno século XXI, quando a humanidade afirma haver feito grande progresso nas esferas cultural e tecnológica, ainda existam presos por delito de opinião. O direito a um julgamento imparcial e processo legal dentro da lei faz parte do direito internacional consuetudinário. Ainda assim, ao redor do mundo, milhares de defensores de direitos são encarcerados indevidamente, depois de enfrentarem julgamentos com irregularidades, que condenam os esforços pacíficos para criar sociedades justas, igualitárias e sustentáveis. Não é nenhum segredo que o trabalho público estimulante que denuncia transgressões dos poderosos ou que busca justiça para os excluídos se tornou extremamente perigoso nos últimos anos. Essa tendência tem se confirmado em democracias, ditaduras e em países com regimes híbridos.
Em dezembro do ano passado, a CIVICUS Monitor – uma plataforma de pesquisa participativa que acompanha as circunstâncias que permitem o trabalho de defensores dos direitos humanos globalmente – publicou seu relatório anual People Power Under Attack. Os achados revelam que 87% da população mundial vive em países com um espaço civil inadequado. O espaço civil é o alicerce das sociedades democráticas e abertas. Está baseado na capacidade de grupos da sociedade civil e de indivíduos preocupados de se organizarem, se comunicarem e participarem sem impedimentos na formação ativa das estruturas sociais, políticas e econômicas ao redor deles.
Sudha livre! #PermaneçaComoMinhaTestemunha. Sudha Bharadwaj, Índia. Defensora apaixonada dos direitos dos trabalhadores e dos povos indígenas.
As lutas pela justiça e pelos direitos dependem do livre exercício das liberdades civis de associações, reuniões pacíficas e expressões reconhecidas pela lei internacional e estão incluídas na declaração de direitos de quase todos os países. Apesar disso, mais de um quarto das pessoas vive em países que “fecharam” completamente o espaço civil, onde as condições são tão terríveis que aqueles que expressam divergência e defendem os direitos são, habitualmente, encarcerados, feridos ou mortos. A lista desses países é longa e proibitiva e se estende da China até Cuba.
Poderíamos esperar que um acontecimento importante como a pandemia, que causou uma quantidade enorme de sofrimento, abrisse caminho para governos mais solidários. Porém, a pandemia da COVID-19 parece ter acelerado as tendências negativas nos espaços civis. Nossa pesquisa revela que vários governos intensificaram a censura e a vigilância dos defensores dos direitos humanos para reprimir as críticas, quando, na verdade, deveriam estar priorizando o acesso à informação e abrindo espaço para o diálogo aberto e construtivo com a sociedade civil.
Em um grande número de países, ativistas que lutam por assuntos tão básicos como a igualdade perante a lei ou pelos direitos das mulheres sobre o próprio corpo ou, ainda, por eleições livres e justas estão sendo arbitrariamente encarcerados e submetidos à impiedosa força da lei e muito mais, devido à participação em atos pacíficos de desobediência civil. Nos últimos anos, mobilizações populares contra líderes com tendências autoritárias, em lugares tão distintos como Bielorrússia ou Uganda, foram enfrentadas com uma crueldade incomum.
Ainda assim, o poder popular conseguiu forçar a realização de um referendo constitucional em 2020, para tornar o Chile um lugar economicamente mais justo e também conseguiu frustrar uma tentativa do presidente do Malauí de se manter no poder de maneira inconstitucional. Nos Estados Unidos, um ajuste de contas histórico com os policiais racistas ao longo dos protestos Black Lives Matter ajudou a levar um número recorde de pessoas para votar e, assim, derrotar um presidente delinquente nas eleições. Nos últimos dias de 2020, a Argentina aprovou a lei sobre a legalização do aborto, depois de anos de um ativismo determinado por defensores dos direitos reprodutivos e sexuais das mulheres.
Atualmente, uma mobilização pacífica enorme está ocorrendo com agricultores e seus simpatizantes nas imediações da capital da Índia, Delhi, contra legislação que foi elaborada de maneira apressada e que apoia os interesses dos grandes negócios e que foi aprovada pelo Congresso sem consultas à população nem debates adequados. Para ilustrar, o governo atual do país, que demonstrou escasso respeito pelas normas democráticas, já está tentando retratar os manifestantes como “equivocados” ou atuando em interesses de forças externas.
No final, o poder do povo necessita de apoio público para contrabalançar a difamação e criminalização dos defensores dos direitos. O custo da repressão é gigantesco, tanto para os indivíduos perseguidos como para seus entes queridos. As mobilizações populares e a pressão internacional levaram 27 anos para garantir a libertação de Nelson Mandela das prisões do sistema de apartheid. Não precisa ser do mesmo jeito com Buzurgmeher Yoruv, advogado tajique de direitos humanos que está atualmente cumprindo uma pena de 22 anos por defender membros da oposição política no seu país.
A solidariedade global ajudou a garantir a libertação do corajoso defensor de direitos e ativista pelos direitos democráticos da população do Bahrein, Nabeel Rajab, em junho do ano passado. Logo antes do Natal, os quatro jornalistas do site IWACU do Burundi, que foram presos depois de um julgamento falho somente por haverem feito uma reportagem investigativa em matéria de segurança, receberam o indulto. Não obstante, a luta pela libertação de outros prisioneiros por delito de opinião continua.
Embora o efeito em cascata das restrições do espaço civil pareça duro atualmente, a história nos mostra que outro caminho é possível e passa pela manifestação do poder popular. É fundamental que não nos esqueçamos jamais dos sacrifícios das pessoas que lutaram pelos nossos direitos e que são perseguidas devido a sua luta pela justiça. Esperemos que 2021 seja um ano melhor para elas. Todos nós temos a responsabilidade de atuar no espírito de solidariedade global para eliminar essa mancha coletiva na nossa humanidade.
Mandeep Tiwana é diretor de programa na CIVICUS, a aliança global da sociedade civil. Para saber mais da campanha da CIVICUS #PermaneçaComoMinhaTestemunha, para a libertação de defensores dos direitos humanos, clique aqui. O relatório People Power Under Attack 2020 pode ser acessado aqui.
Traduzido por Graça Pinheiro / Revisado por Gabriela Assis Santos