Às vésperas do centenário do Partido Comunista da China, em julho de 2021, a história da primeira brigada feminina na década de 1930 continua a permear a cultura popular e a imaginação do povo chinês.

Ponto de vista de Tings Chak

“Você é um proletário?”, pergunta a líder da brigada. Sem obter resposta, ela explica a pergunta: “Você possui terras?”

Wu Qionghua, uma jovem vestida em linho vermelho e tranças longas, rebate: “eu sou uma escrava. Não possuo nada.” Qionghua se tornou órfã e foi escravizada após o dono das terras, Nan Batian (“O Tirano do Sul”) matar sua família. Ao longo da trama, descobrimos que Qionghua havia acabado de fugir da escravidão com ajuda de Hong Changqing, um membro do partido comunista.

Nos deparamos com a outra mulher na tela, com a cabeça ligeiramente abaixada. “E você?”, a comandante pergunta.

“Não acho que possua terras”, ela responde timidamente. “Fui vendida quando tinha 10 anos.”

“Você com certeza é uma proletária,” a comandante afirma. “Siga.”

Assim, a 121ª e a 122ª integrantes são empossadas na primeira brigada só de mulheres do Exército Vermelho Chinês. Ou assim é mostrado no longa-metragem de 1961, repetição da história “O Destacamento Vermelho de Mulheres,” dirigido por Xie Jin.

Uma História que Precisa ser Contada

Passo pelos portões do parque. Com alguns minutos de atraso, atravesso os vendedores de guloseimas, lembrancinhas e a exibição monumental de luzes. Eles me sinalizam com as mãos para aguardar. O show já começou. Observo enquanto a arquibancada para 2400 pessoas começa a se mexer próxima a nós, em sincronia com a música sinfônica épica que explode logo acima. Estou aqui para ver o show noturno do “O Destacamento de Mulheres Vermelhas” (红色娘子军) produzido em Sanya, a cidade litorânea ideal para as férias, na província insular de Hainan, na China.

O Destacamento Vermelho foi a primeira brigada só de mulheres, que se tornou um mito muito presente na história moderna chinesa. Foi feita e refeita em inúmeras produções socialistas, ou “da cultura vermelha” ao longo do último século.

A arquibancada para e eu sigo ao meu assento. À esquerda do palco, entram os coqueiros da China subtropical. A história se passa em 1931, Hainan, localizada no Mar da China Meridional. É uma área muito disputada e explorada pelos interesses dos colonos, fronteira da então Malásia Britânica e Singapura, Vietnã sob domínio francês, “Leste da Índia” alemão ou o que hoje é a Indonésia e as Filipinas ocupadas pelos Estados Unidos. No mesmo ano (1931), a Manchúria, nordeste da China, foi anexada pelos japoneses, prevendo o imperialismo fascista que dominaria a região.

O que o Ocidente chama de II Guerra Mundial, a China conhece como uma guerra de resistência que durou 14 anos, e custou mais de 35 milhões de vidas chinesas. É nesse ano que encontramos nossas protagonistas Qionghua e Honglian, no momento da formação da brigada do Destacamento Vermelho. No entanto, Qionghua não é uma personagem ficcional.

A personagem é baseada em Pang Qionghua, que nasceu em 1911, o ano da Revolução Xinhai, que marcou a queda da última dinastia chinesa. De casamento arranjado aos quatro anos, Pang Qionghua fugiu de seu destino para unir-se ao Exército Vermelho em 1930. Ela se tornou a comandante da brigada de 103 mulheres fortes. Elas eram espiãs que protegiam os arsenais militares e ganharam o título de “Destacamento Vermelho de Mulheres” após diversas vitórias em batalha contra o inimigo, o Exército Nacional. A última integrante faleceu em 2014. Desde 1930, essa história é contada e recontada, adaptada às necessidades das mudanças que ocorrem na China.

Documentado primeiramente por Liu Wenshao em um noticiário em 1957, foi posteriormente transformado em uma ópera local de Hainan, mas foi a versão em filme que trouxe a história baseada em fatos reais ao grande público. O filme se transformou em uma história em quadrinhos impressa em massa, antes de se transformar em um balé, dirigido por Jiang Qing, ou “Madame Mao”, o mesmo balé escolhido para ser apresentado ao ex-presidente norte-americano Nixon em sua visita de reaproximação com a China em 1972.

Durante o período da Revolução Cultural (1966-1976), o balé sem falas foi adotado como um dos “oito modelos de ópera” adequados a uma nação de 800 milhões de pessoas. Foi apresentado 4000 vezes ao longo das últimas cinco décadas e meia. É um marco cultural importante, por estabelecer uma identidade nacional pós-revolução e por levar a cultura moderna da China aos palcos internacionais.

Recentemente, a história foi adaptada para uma  série de TV em 2006 e reencenada pelo Balé Nacional da China, em 2014. A cada era, a história de Qionghua e Honglian continua atual, porque ainda é considerada uma história que precisa ser contada.

Um Parque Temático da Cultura Vermelha

O público em massa nas arquibancadas, onde me sento, começa a se mover novamente para a nova megaprodução da história, que se passa em Sanya. Bombas artificiais caem dos céus contra um rio artificial. Um farol ilumina a foice e o martelo em vermelho, em montanhas distantes. Um senhor de terras desfila entre o público com um chapéu de papel em formato de cone. Avós comentam alto, como se estivessem vendo um drama na TV de casa. Há acrobatas, 11 palcos móveis, e 300 pessoas entre elenco e produção. E isso acontece toda noite, por 99 yuans, o bilhete (15 dólares).

Este projeto, o primeiro do tipo na China, estreou em 1 de julho de 2018, no projeto do parque temático do Destacamento Vermelho de Mulheres de Artes Performáticas em Sanya, que combina arte, cultura e a história vermelha em uma única plataforma. O projeto de 1.2 bilhões de yuans (mais de 185 milhões de dólares), ocupa uma área de 72 hectares de terra e é administrado em conjunto pelo Estado e atores, incluindo o Grupo Chunguang de Pequim e o Grupo Shaanxi de Turismo, que foi responsável por muitas produções em larga escala de cultura vermelha pelo país. É um verdadeiro projeto de cultura socialista com traços chineses.

Em 1 de maio de 2020, Dia Internacional do Trabalho, Hainan celebrou 70 anos de sua libertação, quando a Batalha da Ilha Hainan acabou em 1950, e se incorporou formalmente à República Popular da China. Em Junho de 2020, o Comitê Central do Partido Comunista da China  (CPC) e o Conselho de estado divulgaram o plano mestre de transformar toda a ilha em um porto de livre comércio.

Até 2050, Hainan deve se tornar um centro internacional de finanças, turismo, tecnologia e logísticas sem precedentes. Em suas considerações iniciais na 13ª Assembleia Nacional Popular, o mais alto órgão legislativo chinês, o Primeiro-Ministro do Conselho de Estado destacou a importância da cultura vermelha na estratégia para este projeto nacional: “Precisamos estimular o desenvolvimento da indústria do turismo, uso integral do potencial turístico regional, desenvolvimento rural e turismo ‘vermelho’.”

Em demonstração impressionante de recuperação pós-pandemia, na semana do feriado nacional de outubro de 2020, Sanya bateu o recorde de 729.000 visitantes, mais que o dobro dos habitantes da região, e gerou mais de 4 bilhões de yuans em receita (cerca de 600 milhões de dólares), 39% a mais que o ano anterior.

As visitas ao parque temático Destacamento Vermelho disputam com destinos turísticos como as praias tropicais, resorts e cidades cinematográficas. O Festival de Artes e Cultura “Jovem China” de Sanya trouxe 1000 jovens ao parque, e 50.000 participantes online, ao longo de três dias, estimulando as futuras gerações do país a “seguirem continuamente os passos dos revolucionários e carregarem o espírito do “Destacamento Vermelho de Mulheres.”

Selfies Socialistas

Conforme a multidão se mistura na arquibancada, crianças correm para tirar fotos ao lado das jovens atrizes, com os pais em seu encalço. Este é outro tipo de parque temático, outro tipo de história de heroína. Alguns vem para ver o espetáculo, outros para passar tempo com a família. Saio com uma selfie com uma das jovens atrizes com sua túnica cinza azulada de soldado e bonés com estrela vermelha e um novo caderno com a marca do Destacamento Vermelho para escrever esta história nele. Na véspera de celebração do centenário do CPC, em julho de 2021, a cultura vermelha com características chinesas não apenas vive, como continua a se reinventar e encontrar novos ares.

*Este artigo foi produzido por Globetrotter. Tings Chak é designer líder e pesquisadora no Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, editora de Dongsheng (Vozes do Oriente) e amiga dos Globetrotters/Peoples DispatchIDN-InDepthNews – 04 de fevereiro de 2021]

Foto: Cena da ópera Destacamento Vermelho de Mulheres, adaptada do filme de 1961, de mesmo título. Mulheres do Destacamento Vermelho treinando com o rifle no ato 2, na produção de 1972 do Balé Nacional da China. Fonte: Wikimedia Commons


 

Traduzido por Fabricio Altran / Revisado por Larissa Dufner

O artigo original pode ser visto aquí