NÃO VIOLÊNCIA

 

 

Por Cristiane Prudenciano

 

 

Quando falamos de Direitos Humanos relativos às mulheres, nos deparamos com inúmeras situações de violações e violências. As contribuições das mulheres têm sido silenciadas, esquecidas, deturpadas ou discriminadas. O papel fundamental da mulher e a sua importância nas conquistas políticas, econômicas, culturais e sociais foi e ainda é invisibilizado.

Escrevo esse texto com o objetivo de percorrer algumas lutas protagonizadas pelo movimento de mulheres e dos diversos feminismos, visando identificar ou evidenciar táticas e estratégias da metodologia da não violência. Celebrar o Dia Internacional da Mulher vai muito além de presentear mulheres com flores ou adotar a prática da adulação apelativa e comercial. Perpassa pelo resgate, por rememorar lutas contemporâneas e ancestrais de mulheres, através da atitude de aprender com elas, por suas conquistas de melhores condições de trabalho, pelo direito ao voto, direito ao corpo e direito à liberação das amarras sociais. 

Em 1857, em 8 de março, 129 mulheres operárias organizaram uma greve em uma tecelagem norte-americana. A greve faz parte de uma gama de métodos não violentos, que também incluem a não cooperação, o boicote, a desobediência civil ou a não participação. São recursos utilizados pela falta ou o esgotamento do diálogo, para a transformação de situações violentas por não violentas. O dono da fábrica, diante da reivindicação das trabalhadoras norte-americanas fechou as portas do espaço onde estavam, e ateou fogo. As operárias morreram queimadas no galpão onde trabalhavam. 

A proposta de uma data comemorativa, em menção à luta das mulheres, aconteceu em 1910, pela alemã Clara Zetkin, na II Conferência Internacional das Mulheres Socialistas, em Copenhague, na Dinamarca. Somente em 1975, as Nações Unidas começaram a celebrar a data. Dois anos depois, a Assembleia Geral da ONU aprovou uma resolução proclamando o Dia das Nações Unidas para os Direitos da Mulher e da Paz Internacional, após a pressão mais de 1 milhão de mulheres que se reuniram nas ruas exigindo a legitimidade da comemoração. Atos públicos, como marchas de protesto, são táticas da metodologia não violenta, que clamam pela atenção pública, com o propósito de gerar influência, reflexão e mudança.

As ideias não violentas se diferenciam das ideias convencionais sobre resolução de conflitos. Gandhi é um nome reconhecido quando falamos em não violência, ele desenvolveu a filosofia Satyagraha na busca da independência da Índia que estava sob domínio britânico. O termo pode ser traduzido como Satya (verdade) e Agraha (firmeza constante). Para Gandhi, a não violência é a arma dos fortes e a resistência não violenta compõe as ideias centrais de Satyagraha.

Para Carla Garcia, o movimento Sufragista liderado por mulheres inglesas teve duas grandes contribuições: uma foi uso da palavra solidariedade, escolhida para substituir fraternidade, que significa irmão homem. A outra foi chamar a atenção sobre sua causa, com uma vocação de não violência, ensaiando e provando novas formas de protesto. Apesar do movimento ficar conhecido pela ênfase que dava ao direito ao voto, as sufragistas inovaram e inventaram uma nova forma de luta através das manifestações, da interrupção de oradores mediante perguntas sistemáticas, da greve de fome e muitas outras formas de protesto. Gandhi observou e estudou a luta do movimento sufragista, declarando que o movimento contribuiu com as táticas da não violência.

Na contemporaneidade, destaco a Marcha das Vadias, movimento que teve seu início em 2011, na cidade de Toronto, no Canadá. Depois de diversos casos de estupro, um policial canadense responsável por orientar a comunidade sobre segurança; deu o conselho às mulheres de não se vestirem como vadias, para evitar estupros. Em contraposição a tal declaração, a Marcha das Vadias se multiplicou por cidades do mundo, com a característica de ser composta por mulheres jovens, ativistas autônomas não necessariamente engajadas a algum tipo de luta feminista anteriormente, ou mesmo em alguma atividade de contestação social. A internet contribuiu para a organização ocorrer de forma horizontal. Em geral, desde a sua primeira edição, a divulgação das marchas se inicia pelas redes socais, seguida da criação de materiais específicos para divulgação: blogs, banners e vídeos. A primeira marcha no Brasil ocorreu na cidade de São Paulo, no dia 4 de junho de 2011, reunindo cerca de 300 pessoas. 

Em 2014, a pesquisadora e ativista Daniela Dell’Aglio descreve as diferentes perspectivas feministas na cidade de Porto Alegre que configuravam o cenário da Marcha das Vadias (marxistas, interseccionalistas, emancipacionistas, anarca-feministas, do feminismo negro, do transfeminismo e do feminismo radical). Sua pesquisa, embasada por narrativas de ativistas entrevistadas, dá visibilidade à Marcha das Vadias de 2014, tanto no modo como ela foi se configurando no cenário político como os seus efeitos. 

A pluralidade dos feminismos que participavam da marcha, apresentava contrapontos de olhares, tensões e dissidências. A não violência contempla que os conflitos entre pessoas, grupos e organizações são inevitáveis. A diversidade é necessariamente geradora de conflitos e não há motivos para fugir deles. Os conflitos são essenciais para o aprimoramento das relações interpessoais, para a construção de uma sociedade mais democrática, justa, igualitária e plural. Dell’Aglio menciona que tais perspectivas de diversidade evidenciaram a necessidade ampliar o leque de possibilidades dos feminismos, de enxergar o conflito enquanto potência para o aumento do debate e para a construção constante dos feminismos na atualidade.

Outro o movimento de mulheres de muita potência é o da Marcha das Margaridas, que homenageia a sindicalista paraibana Margarida Maria Alves, aos 50 anos, por um matador de aluguel a mando de fazendeiros da região. Esse ano, completam-se 38 anos de seu assassinato e até hoje, nenhum acusado por sua morte foi condenado. A Marcha das Margaridas é a maior ação conjunta de mulheres trabalhadoras da América Latina.

Em 2019, cerca de cem mil mulheres do campo e da cidade saíram do Pavilhão do Parque da Cidade em direção à Esplanada dos Ministérios. A marcha é construída em parceria com os movimentos feministas, centrais sindicais e organizações internacionais, coordenada pela Confederação Nacional de Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares (Contag). Tais reuniões e atos com agenda permanente do movimento sindical de trabalhadoras rurais e de movimentos feministas, compostas por ações com construção de discursos, petições, arte, passeatas, são exemplos práticos de táticas não violenta, podendo a marcha assumir o caminho estratégico de contestação ou de negociação. No caminho para o Planalto ecoava através das palavras do Canto das Margaridas, entoada pelo coletivo teatral pernambucano feminista Loucas de Pedra Lilás: “Olha Brasília está florida, estão chegando as decididas. Olha Brasília está florida, é o querer, o querer das Margaridas”.

 Em 2015, aconteceu uma participação emblemática do movimento de mulheres que ficou conhecido como “Primavera das Mulheres”. Cerca de 15.000 mulheres foram às ruas do país protestar contra o projeto de lei 5069/2013, em tramitação no Congresso Nacional, sob autoria do deputado Eduardo Cunha (PMDB/RJ), então presidente da Câmara Federal. O projeto dificultaria o atendimento das vítimas de violência sexual nos serviços públicos de saúde. Os protestos ocorreram em diversas cidades do país, a maioria mobilizados através da internet, com destaque para o uso das redes sociais para organizar ações feministas.

Por fim, destaco a importância da experiência fantástica do coletivo feminista chileno Las Tesis, apresentada em novembro de 2019 nas ruas de Valparaíso, cidade turística a 120 quilômetros da capital Santiago, no Chile. A iniciativa se perpetuou em outros países, tanto da América do Sul quanto na Europa e América do Norte. Os vídeos da performance ‘Um Estuprador no Seu Caminho’ viralizou nas redes sociais e tornou-se um fenômeno.

Em várias cidades, mulheres foram às ruas e ocuparam as praças para realizar a performance. Foi como um grito, feminino e coletivo, que estava entalado na garganta e através dessas intervenções artísticas proporcionou soltar a voz de milhares de mulheres: 

E a culpa não era minha, nem onde estava, nem como me vestia. O estuprador é você!

 São os policiais. Os juízes. O Estado. O presidente.

O estado opressor é um macho estuprador.”

 

Nascer mulher ou torna-se mulher em uma sociedade machista tem sido sinônimo de risco de morte ou de constante possibilidade de se tornar um alvo da violência. Segundo a ONU, a cada 06 horas uma mulher era vítima de feminicídio no mundo em 2018. Com a pandemia, o número de casos de violência aumentou consideravelmente. A relatora da ONU, Dubravka Simonovic, defende ação urgente para erradicar “pandemia” de feminicídio. No final de 2020, ela emitiu um comunicado, apoiado por especialistas em direitos humanos, propondo criação de observatórios e sistemas de vigilância afim de prevenir mortes por assassinatos. Segundo ela, o Covid-19 está ofuscando a crise da violência contra meninas e mulheres. O machismo e a misoginia são expressões cruéis da violência patriarcal, que produzem sofrimento tanto para homens, quanto para mulheres. 

Flores da resistência, as mulheres são cada vez mais necessárias para questões relacionadas a defesa de direitos e a construção de uma sociedade com valores não-violentos. Firmes na constante busca da verdade, da influência, da transformação, da igualdade de direitos e o respeito à diversidade. Sua contribuição à luta não violenta é dinâmica, criativa, vasta e inspiradora. Desse modo, a luta das mulheres pelo reconhecimento de seus direitos, tanto no Brasil quanto no mundo, precisa ser celebrada, contada, visibilizada e recordada. Receber flores no Dia Internacional da Mulher é maravilhoso para muitas mulheres. Respeitar suas lutas, suas conquistas, seu corpo, sua caminhada e seus quereres, também é.

Referências:

DELL’AGLIO, Daniela Dalbosco. Marcha das Vadias: entre tensões, dissidências e rupturas nos feminismos contemporâneos. Dissertação de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2016.

DREVET, Camille. Gandhi: vida, obra e pensamento. Lisboa: União Gráf. Editorial Império, 1969.

GARCIA, Carla Cristina. Breve história do feminismo. São Paulo: Claridade, 2011.

 

Sites: 

feminicídio | ONU News

http://transformatoriomargaridas.org.br/

 

Cristiane Prudenciano, mestre em Ciências Sociais pela PUC-SP.  Membro do NIP PUC/SP (Núcleo Inanna de Pesquisa) sobre teorias de gênero, sexualidades e diferenças. Praticante da meditação da Mensagem de Silo. Professora nos cursos de Aprendizagem Profissional, Administração, Direitos Humanos, Cultura de Paz e Não Violência. Escreve para a Agência Pressenza Internacional.