Cerca de dois meses atrás, encontrei um diário com relatos do meu avô Herman Lesseraux em um armário. Algumas das entradas do diário datam do início do século XX (1912), quando ele e sua família estavam a caminho dos EUA depois de deixarem a França. Foi impressionante vê-lo descrever o que lhe parecia ser uma mágica “terra das infinitas possibilidades“, onde se poderia ir “da sarjeta para a avenida principal“, se você trabalhasse bastante. Isso foi antes da proliferação em massa do rádio e TV, então ele estava recebendo essas imagens da América dos jornais e de parentes que estavam descrevendo suas descobertas de volta para a família depois de terem feito essa viagem. Foi comovente e fascinante ver a ânsia com que ele escreveu sobre seu desejo de chegar aos EUA. E foi ver esses diários que me estimularam a escrever este artigo.
Por Mark Lesseraux
Alerta de Spoiler
Neste artigo vou descrever, da forma mais simples possível, o que é o Sonho Americano, como ele surgiu e por que ele está em um estado de colapso agora. Alerta de spoiler: Este artigo não termina com um resumo de como o Sonho Americano é uma mentira. Pelo contrário, este artigo irá afirmar e delinear a realidade histórica do que veio a ser conhecido como O Sonho Americano.
Os Estados Unidos são um país único.
Os Estados Unidos são um país único. Na verdade, é o único país que pôde reivindicar um aumento real nos salários por 150 anos consecutivos. A cada década, desde 1820 a 1970, os salários dos trabalhadores americanos aumentaram. É uma estatística notável! Tão notável, de fato, que legitima indiscutivelmente o que muitos críticos apelidaram de “fantasia” do que veio a ser conhecido como o Sonho Americano.
Em suma, o sonho americano está enraizado na crença de que nos Estados Unidos, se uma pessoa realizar o esforço necessário, ela se sairá melhor economicamente do que seus pais. Apesar do fato de que uma boa dose de nacionalismo exacerbado e pensamento mágico evoluíram a partir do mito americano “de subir na vida”, não se pode negar o fato de que o mito em si está enraizado em um conjunto bem documentado de fatos.
Durante todo o século XIX e na maior parte do século XX, as pessoas saíram da Europa para os EUA e de outros continentes ao redor do mundo porque ouviram que você recebe salários mais altos aqui. Várias ondas de imigrantes seguiram para os EUA e relataram para suas famílias e amigos: “é verdade, você recebe mais aqui nos EUA! E não é só isso, os salários tendem muitas vezes a subir à medida que os meses e anos passam!” Como resultado, os imigrantes vieram sem parar para os EUA para participar do que veio a ser conhecido como o Sonho Americano. Este cenário continuou, basicamente inabalável, por 150 anos.
Como os EUA se tornaram tão especiais?
Por que esse foi o caso nos EUA? Como essa prosperidade sem precedentes e aparentemente mágica ocorreu por 150 anos? A resposta para esta pergunta não é realmente difícil de identificar se você souber como e o que procurar.
No início do século XIX, as empresas começaram a ser construídas e a se expandir por todo o território norte-americano. O problema era que essas empresas não tinham pessoas suficientes para trabalhar para eles. Afinal, a população nativa tinha sido, para colocar em termos mais suaves, extinta.
Ao longo do século 19, devido à expansão das empresas existentes nos Estados Unidos e ao surgimento quase constante de novas, as companhias estavam constantemente procurando encontrar novos trabalhadores. Essas companhias também tiveram que encontrar uma maneira de manter os funcionários que já estavam trabalhando para eles. Para isso, essas companhias tinham que continuar aumentando os salários. Esta série de circunstâncias é o que os economistas se referem como uma “escassez de mão de obra”. (1) Deve-se mencionar que este foi o caso para os trabalhadores brancos. Durante grande parte do século XIX, os trabalhadores negros vieram por meios muito diferentes. Um meio que não envolvia salários. Mas esse é um tópico (digno) para outro artigo e não algo que vamos aprofundar aqui.
Não tem mistério
Não há nada inexplicável ou misterioso sobre o Sonho Americano. O motivo para o aumento dos salários nos Estados Unidos a cada década, desde 1820 até os anos 1970, foi que os Estados Unidos sempre tiveram escassez de mão de obra.
O sonho americano era o produto de uma pura e simples falta de mão de obra. O que levanta uma segunda questão: como é que ninguém ensinou a você e a mim sobre este fato simples, óbvio e extremamente crucial quando estávamos na escola primária ou no ensino médio? Outro tópico digno para um artigo diferente, talvez.
No final dos anos 70 algo mudou
No final dos anos 70, os salários pararam de subir nos EUA. Na verdade, não houve um aumento real nos salários nos Estados Unidos desde 1978. Mas o que aconteceu? O que mudou?
Algumas coisas mudaram. Em primeiro lugar, o acúmulo de computadores nos locais de trabalho nos anos 60 começou a tornar milhares de postos de trabalho obsoletos. Em segundo lugar, quase ao mesmo tempo as mulheres americanas adultas começaram a entrar em massa no mercado de trabalho. De repente, não eram apenas os homens que estavam sendo contratados para todos os tipos de empregos. Nos anos 60 e 70, as empresas contratavam tanto as mulheres (que representam metade da população dos EUA), como os homens. A junção desses dois fatores com um movimento crescente de produção e empregos no exterior e, em meados da década de 1970, os Estados Unidos não tinham mais escassez de mão de obra. Em vez disso, pela primeira vez em 150 anos, o país teve o que é conhecido como uma “mão de obra excedente”, que é um excesso de trabalhadores à procura de trabalho.
Por que os salários pararam de subir? Para onde foi o dinheiro?
Então o que tudo isso tem a ver com o fim do aumento dos salários? Bem, uma vez que as companhias não precisavam mais pagar salários mais altos a seus trabalhadores para mantê-los devido ao excesso de trabalhadores disponíveis, eles simplesmente pararam de aumentar os salários. Mais uma vez, não há mistério aqui. Como em qualquer escola de negócios na América irá lhe dizer: “Se você não tem que pagar salários mais altos para seus funcionários, NÃO PAGUE!”
Mas tem mais alguns fatores. Ao mesmo tempo que as companhias pararam de aumentar os salários dos seus funcionários, um novo fenômeno começou. De repente, nas décadas de 1980 e 90, os salários dos CEOs (diretores executivos das companhias) começaram a subir a taxas antes inconcebíveis. Na verdade, o salário médio de um CEO aumentou, surpreendentemente, uns 940% desde que os salários dos trabalhadores pararam de subir em 1978. (2) Se democratas ou republicanos estiveram no cargo durante este período teve pouco ou nenhum efeito sobre a taxa desta mudança completamente sem precedentes na concentração da riqueza.
Há ainda outros fatores nessa história. Nas décadas que se seguiram aos anos 1970, os funcionários trabalham mais horas e produziram mais bens e serviços para suas companhias do que nunca na história dos Estados Unidos. Ainda assim, por seus esforços, esses trabalhadores não receberam nenhum aumento real em seus salários nos últimos 40 anos.
Como isso pode ter acontecido?!
Como isso pode ter acontecido?! Como todos esses funcionários podem estar produzindo cada vez mais para suas companhias e não serem pagos pelo que produziram? Como as companhias estão conseguindo ficar com todos os lucros para si mesmos e não retribuir nada a seus funcionários?
A explicação mais proeminente apresentada nas décadas de 1980 e 90 como o motivo da enorme mudança na fortuna desses CEOs afirmava que foi a sua “genialidade empresarial” que produziu essa mudança. De repente, pessoas como Lee Iacocca e Jack Welch estavam sendo apresentados como os novos “empresários celebridades” parecidos com gurus que, por meio de um tipo especial de brilho, ganharam o direito de aumentar seus salários em 10 vezes o valor que ganhavam na década de 1970, ao mesmo tempo em que mantinham os salários dos trabalhadores estáveis. (3)
É claro que estas explicações estavam todas enraizadas em absurdos. A única razão pela qual estes CEOs foram capazes de dar a si mesmos aumentos absurdamente massivos, sem compensar seus trabalhadores, é porque nos últimos quarenta anos houve um excedente de mão de obra nos EUA. Na forma brutal e desumanizada de economia que tem sido praticada desde o início dos anos 1980, a “produção de trabalho” (quanto um empregado produz por hora para a companhia) tem sido sistematicamente não levada em consideração. Ao contrário, tudo isso está focado na “margem de lucro”, que, no panorama econômico atual tem pouco ou nada a ver com o bem-estar dos funcionários e tudo a ver com um pequeno grupo de empresas de elite transformando suas fortunas de milhões de dólares em fortunas de bilhões de dólares.
A remoção de todos os limites em bancos e grandes corporações (Desdemocratização)
Acrescente a tudo isso uma redução massiva nas restrições ao domínio das megacorporações nas áreas de mídia, comércio e bancos nos últimos 30 anos, junto com um ataque calculado e o enfraquecimento dos sindicatos nas últimas quatro décadas. O resultado foi uma alteração da estrutura do poder dos EUA e uma formalização do que um dia já foi, pelo menos até certo ponto, um verdadeiro sistema democrático. Quarenta anos de desregulamentação corporativa (a remoção de quase todos os limites em bancos e megacorporações) permitiu que um punhado de empresas corporativas super-ricas ganhassem praticamente o controle total do que antes eram instituições públicas e canais de informação. Esta tem sido a agenda aberta não mencionada, mas também subentendida do último meio século de “neoliberalismo” liderado corporativamente: https://staging1.pressenza.com/2020/12/the-fall-of-the-liberal-left-the-rise-of-neoliberalism-and-the-resulting-confusion-that-has-ensued/
Esses conglomerados corporativos estimulados com a ajuda de uma publicidade massiva da propagação de que “A privatização é boa e o governo é ruim” durante as décadas de 1980 e 90, tornaram sua prioridade esmagar todas as formas existentes de solidariedade sindical e romper a longa batalha pelos direitos e benefícios dos trabalhadores. Ao virar duplamente a população dos EUA contra o conceito de governo, essas enormes corporações privadas conseguiram essencialmente privatizar e assumir o controle do próprio governo. Este tem sido o ataque em duas vertentes da classe bilionária: A) Demonizar o estado e colocar as pessoas contra a ideia de governo. B) Assumir o governo por meio da desregulamentação e da remoção de todas as restrições aos limites do poder corporativo.
O resultado da remoção de restrições sobre os super-ricos nos últimos 35 a 40 anos é que agora eles possuem e controlam o conteúdo de praticamente todos os principais meios de comunicação, bem como possuem o controle da política através de lobby (uma política de pressão) e uma grande campanha de doações.
Além disso, nos últimos 43 anos, os super-ricos reduziram a percentagem de impostos que pagam em impressionantes 47%. Na verdade, a partir de 2019, as 400 famílias mais ricas da América pagam uma taxa de impostos mais baixa do que a classe média. (4)
Estamos agora em um ponto em que é praticamente impossível negar que as principais instituições, todos os principais meios de comunicação, o sistema bancário e o sistema político dos EUA, foram assumidos e submetidos à vontade e aos caprichos de uma classe de elite mega rica. Há quatro décadas, essa classe de elite absurdamente rica, descontrolada e desequilibrada, que mantém membros e faz grandes doações para os partidos Democrata e Republicano, tem imprudentemente usurpado terras, recursos e poder às custas de vidas humanas em todo o planeta. O jornalista vencedor do Prêmio Pulitzer, Chris Hedges, se referiu a esta aquisição como o triunfo do “totalitarismo corporativo”.
A nossa resposta desesperada à crise
Infelizmente, temos tentado resolver esse problema estrutural coletivo como indivíduos isolados que foram treinados para acreditar que a culpa é nossa, que é apenas nossa falta de habilidade pessoal e trabalho árduo que fez com que as coisas funcionassem da maneira que elas têm para nós. A fim de evitar nosso compromisso com o que percebemos como nosso fracasso individual, temos confiado quase inteiramente no uso do crédito para nos mantermos à tona nas últimas quatro décadas.
O resultado foi a acumulação de um nível quase inconcebível de dívida individual e coletiva. Uma dívida que é devida ao grupo de pessoas de elite super-rica que colocou em movimento as forças que geraram esta crise em primeiro lugar.
Tudo isso levou a uma miríade de formas de crise socioeconômica e a uma profunda confusão, frustração e desespero entre uma grande (e crescente) parcela da população dos Estados Unidos. A falta de uma explicação clara do que aconteceu nos últimos quarenta anos gerou medo e o surgimento de novas correntes irracionais de pensamento nacionalista regressivo. Milhões de pessoas que estão justamente desconfiando dos principais partidos políticos e da mídia comprada de notícias falsas-moderadas que se voltaram para essas correntes de pensamento como referências e como frentes de ação. De um modo geral, estes movimentos giram em torno de um desejo de voltar a um modo de vida americano que é simplesmente impossível de voltar precisamente pelas razões indicadas neste artigo.
O custo de tudo isto para o nosso bem-estar
Os custos de tudo isso na nossa saúde e no nosso bem-estar mental e emocional têm sido enormes. Por exemplo, uma em cada seis pessoas nos Estados Unidos agora tomam medicamentos psiquiátricos. (5) A asfixia causada pela privatização e a destruição econômica da classe média pela classe bilionária extraiu o que foi basicamente um roubo que durou quatro décadas de muitos por poucos. A diminuição do valor da vida humana e a divinização do lucro (para muito poucos) a todo custo tornou a vida insustentável e, em muitos casos, insuportável para milhões de americanos.
E como a pandemia de COVID-19 deixou claro, não há como desacelerar essa monstruosidade contínua à vista. Nos últimos 12 meses, ao mesmo tempo em que milhões de americanos perderam seus empregos, suas casas e suas economias, os 660 bilionários americanos tiveram um lucro coletivo de mais de 3,9 TRILHÕES de dólares. (6)
“Há um crime aqui que vai além da denúncia. Há uma tristeza aqui que o choro não pode simbolizar. Há uma falha aqui que destrói todo o nosso sucesso.”
– John Steinbeck (de “As Vinhas da Ira” – The Grapes Of Wrath em inglês)
O que vem a seguir? O que está no horizonte?
Entretanto, o que vem a seguir? Estou perguntando sem retórica, caro leitor. Eu mesmo não tenho uma resposta clara para a pergunta. Esta não é a América, nem o mundo em que nossos avós e nossos pais cresceram. Tudo indica que a história que temos contado a nós mesmos durante séculos não está mais de acordo com a realidade em que vivemos. Experimentar voltar a um modo de pensar e viver que já passou ou regredir, como sabe quem já estudou um pouco de história (ou um pouco de biologia), é uma proposição de fim de espécie.
Dessa vez, não estamos lidando com um problema provinciano, mas sim com uma crise humana global que envolve todos, em todas as partes do planeta. Esta é a primeira vez na história da humanidade. Não podemos voltar aos anos 1950 ou 1990 ou a qualquer época anterior.
Que novo horizonte, que novas cenas podemos começar a projetar juntos? Que (novos) passos reais podemos começar a dar? Estas são as perguntas às quais dedicarei o restante dos meus artigos em 2021. Fiquem ligados.
Citações:
- Richard Wolff, “The Myth Of American Exceptionalism Implodes”, January 18, 2011, The Guardian, pp.2
- Lawrence Mishel and Julia Wolfe, “CEO Compensation Has Grown 940% Since 1978”, August 14, 2019, Economic Policy Institute, pp.1
- Barrons, “What Barrons Said About Chrysler Chairman Lee Iacocca In 1985”, July 5, 2019, Barrons.com, pp.1
- Aimee, Pichee, “America’s 400 Richest Families Now Pay A Lower Tax Rate Than The Middle Class”, CBSNEWS.com, October 17, 2019, pp.1
- Sara G. Miller, “1 In 6 Americans Takes A Psychiatric Drug”, December 13, 2016, Scientific American, pp.1\
- Juliana Kaplan, “Billionaires Made 3.9 Trillion During The Pandemic”, January 16, 2021, Business Insider, pp.1
Traduzido do inglês para o português por Doralice Silva / Revisado por Larissa Dufner