OLHARES

Por Clementino Jr. 

 

“Uma das causas desse fenômeno é óbvia: as ações da experiência estão em baixa e tudo indica que continuarão caindo até que seu valor desapareça de todo. Basta olharmos um jornal para percebermos que seu nível está mais baixo do que nunca e que, da noite para o dia, não somente a imagem do mundo exterior, mas também a do mundo ético sofreram transformações que antes não julgaríamos possíveis.”

(Walter Benjamin — O Narrador)

Benjamin escreveu esse comentário em uma obra fundamental há 85 anos do momento em que escrevo. Curto muito as citações atemporais, por mais tristes que sejam suas revelações. Isso porque o tão popular e raso “eu avisei” de agora já vem sendo avisado muito antes de nós ou dos nossos pais. E muito antes mesmo do próprio Benjamin.

Hoje, os “jornais” são instantâneos. E, com a pandemia, estão cada vez mais presentes nas telas. As bancas trazem notícias em delay em relação às redes ágeis de microtextos, que viralizam informações poucos minutos após acontecidas, trazendo atualizações constantes. Mas, ao contrário de pensar a ética do narrador pelo fato, quero pensá-la pela necessidade de motivação da ética jornalística que prevê a construção de um personagem que ilustra ou guia a notícia.

Vivemos uma última meia década em que se construíram dois personagens para derrubar o governo. O primeiro deles, ao meu ver, é menos antiético e mais fora do perfil de super-herói de noticiário, mesmo usando capa. Esse talvez faça mais sucesso na geração Pantera Negra, agradando, inclusive, aos neoliberais que surfaram na aba. O segundo é totalmente antiético, com um projeto de ascensão pessoal e um perfil mais “agradável aos olhos dos brasileiros” do que o anterior, considerando o jogo das “visualidades”. Ele foi o grande responsável, alimentado por inúmeros eventos concorrentes, por se transformar em paladino da justiça para uma grande, mas não majoritária, parcela da população.

Na última década, alimentar a narrativa a partir desses personagens — em oposição à derrubada de qualquer pessoa que representasse o governo daquele momento — seria a meta para cumprir a narrativa de um jogo de poder. Talvez precisemos de mais 85 anos para falar dos fatos com a isenção que não vem sendo percebida no atual mercado das notícias. Eu, por exemplo, não estaria mais aqui para dizer “eu avisei”.

Fake News é um novo nome, mas, na prática, elas vêm acontecendo desde que ainda não tinha esse nome. Notícias falsas já eram faladas e espalhadas nos locais certos para ecoarem e atingirem suas metas, antes mesmo da escrita. E, para isso, era e ainda é importante legitimar o mensageiro. Assim, ele vai de uma cidade a outra e anuncia uma boa notícia, uma invasão, uma morte real e por aí vai. O mensageiro que escreve a notícia atende a um grupo que tem interesses no resultado do que vai ser noticiado. E cada grupo jornalístico, se não for ético, não se difere dos congressistas que trocam ementas parlamentares por mudanças de posicionamento e voto. A agressão top pode virar “pop” e ser algo positivo, dependendo do quanto as empresas contabilizam em anúncios em cada noticiário.

autonomia e a pulverização do papel deste “narrador”, principalmente através da pulsação das redes sociais na internet, transformam em narradores do caos aqueles que nada tem de ético, mas que conhecem todas as tramas mesquinhas do esquema. Um em especial se dedicou por três décadas a aprender a mecânica da máquina e isso apenas por estar lá, encostado, a princípio como uma testemunha calada da história, compilando os “tetos de vidro”. Com isso, foi criando e diversificando suas redes de suporte no poder sem méritos. E com a mesma velocidade que as criou, as descartou, pois ele sabe selecionar as ervas podres e descartáveis, causando estrago orgânico em tudo o que foi plantado a duras penas por políticas públicas batalhadas durante décadas com movimentos sociais que buscavam dar uma cara legítima ao país.

Essa transformação não está na capa dos jornais. Mas a destruição destas conquistas gera mais notícia e vendem assinaturas, pacotes de canais e, ainda, visibilidade para patrocinadores. Uma campanha de governo na rede cala a boca por semanas de ataques de uma imprensa de alcance que se propunha “indignada”, mas que tem preço para manter sua estrutura.

Entre destruir o que se plantou pelas lutas populares ou desmatar a Amazônia, quem leva a manchete é a segunda opção, pois é confortável falar da mata e deixar as populações atingidas em segundo plano. Afinal, o “pop” está do outro lado, ou na outra página, anunciando. Cobrir manifestações contra um presidente ou uma presidenta depende, na verdade, de quem será o personagem da matéria para vender notícia. Protagonista ou antagonista? E o gênero também pesa na hora de criar este personagem e determinar como ele vai funcionar. A falta de ética em buscar metas não mata o narrador, ou a narrativa jornalística. Mas quer matar a história.

Para nossa sorte, a história, enquanto houver mundo e quem escreva, pode ter seu registro mudado, desde que a ética enxergue que existem leitores e que as experiências passadas sejam relembradas para entendimento e não para serem negadas. Assim, não repetirmos os mesmos erros por conta dos escribas que tomaram uma posição contrária ao povo por interesses próprios.

Existindo quem leia esse mundo narrado, espera-se também de quem narra se entender como parte do mundo que existe, fora de seus interesses ou de seu grupo.

Texto com revisão crítica de Tayna Arruda.