CINEMA
Por Clodoaldo Lino
O Festival de Cinema de Cannes encerrou em 21 de julho sua 74ª edição, marcando o retorno daquele que é não apenas um dos mais prestigiados festivais de cinema do planeta, mas um dos maiores mercados de filmes do mundo (em 2020 o festival foi cancelado por conta da pandemia). O vencedor da Palma de Ouro nessa edição de 2021 foi o filme franco-belga Titane, da jovem diretora (37 anos) Julia Ducournau. Foi somente a segunda vez na história de Cannes que uma diretora recebeu a Palma de Ouro. A primeira foi a neozelandesa Jane Campion, com o filme O Piano, em 1993.
Titane é o segundo longa-metragem de Ducournau e segue a mesma linha de seu primeiro longa, Grave (mais conhecido pelo seu título em inglês, Raw), que também estreou em Cannes, em 2016, numa mostra paralela. Os dois longas de Ducournau se enquadram na denominação New French Extremity, termo cunhado pela revista Artforum no início dos anos 2000 e que é utilizado por alguns críticos para delinear certos filmes e diretores franceses cuja principal característica seria a transgressão. Situados na fronteira entre “filmes de arte” e “filmes de terror”, obras como Pola X (1999), de Leos Carax, Trouble every day (2001), de Claire Denis, Le Pornographe (2001), de Bertrand Bonello (que faz uma ponta em Titane como o pai negligente da protagonista, Alexia), Irréversible (2002), de Gaspar Noé, Martyrs (2008), de Pascal Laugier, entre outros, são alguns dos títulos que ajudaram a forjar essa denominação, que não chega a determinar um “movimento”, uma vez que os estilos dos diretores e filmes citados variam muito, mas que, de uma maneira geral, poderiam ser designados como filmes que tem na questão do corpo (em seus diversos aspectos – sexo, violência, perversões etc.), seu principal elemento (body-horror é uma designação comum nas resenhas sobre esses filmes). Por esse ângulo, os longas de Ducournau, sem dúvida, se enquadram nesse grupo. Grave tem como mote o canibalismo e Titane vai além, colocando em cena praticamente todos os questionamentos a respeito do corpo em pauta atualmente, tendo, mais uma vez, uma personagem feminina como protagonista (essa é, também, uma das características mais presente nos filmes da chamada NFE). Justamente por causa da profusão de temas, o roteiro de Titane acaba apresentando várias camadas, que vão desde o melodrama expresso nas disfunções familiares até o suspense quanto à revelação final, com direito a serial killer, erotismo e, em certas situações, humor.
Titane narra a trajetória de Alexia que, quando criança, teve uma placa de titânio implantada em seu cérebro devido a um acidente automobilístico. Já adulta, Alexia (Agathe Rousselle) trabalha como modelo em um salão de automóveis, dançando de maneira sensual sobre o capô de um Cadillac, para o fascínio de uma legião de machos que vibram com a associação entre carros e mulheres. Mas não são só os seres humanos que se sentem atraídos por Alexia. Numa sequência que explora a ideia mais “ousada” do filme – a ponto de merecer uma citação por parte do diretor norte-americano Spike Lee, presidente do júri de Cannes na edição desse ano -, a personagem faz sexo com o Cadillac, desenvolvendo uma gravidez. Ademais, Alexia acaba se revelando uma assassina compulsiva e, na tentativa de escapar a perseguição da polícia, transverte seu corpo assumindo a identidade de um rapaz que desapareceu quando criança. Vincent, o pai do menino desaparecido (Vincent Lindon), chefe de um esquadrão de bombeiros no melhor estilo macho-man, acolhe Alexia sem hesitação. A partir desse ponto, a tortuosa relação familiar estabelecida entre “pai” e “filho” assume o centro das atenções, junto com a expectativa sobre o desfecho da gravidez.
As imagens na tela assimilam os aspectos bizarros do roteiro ao modo do cinema extremo, com uma estética gore, recheada de cenas feitas para chocar, desde os assassinatos cometidos por Alexia usando como arma o seu palito de prender os cabelos e a sua tentativa de abortar utilizando esse mesmo palito, passando pela “remodelação” de seu nariz golpeando o próprio rosto contra a pia de um banheiro, até a sequência final com o parto do bebê híbrido. A fotografia do belga Ruben Impens, alternando uma luz ultra-saturada com composições de chiaroscuro, lembra, em algumas passagens, os filmes de Nicolas Winding Refn, e imprime uma textura quase metálica aos corpos e ambientes. Contudo, as escolhas de linguagem não acompanham a “ousadia” das situações, com Ducournau optando por recorrer a referências demasiadamente marcadas. Determinadas sequências, como, por exemplo, o clima homoerótico dos bombeiros ao som do grupo de synthpop Future Island, a tentativa de ressurreição de uma idosa ao ritmo da Macarena, o disparo frenético de assassinatos em série por parte de Alexia com resquícios de humor negro, a agressiva dança entre “pai” e “filho” tendo como trilha musical o clássico dos anos 1960 She’s Not There, da banda The Zombies, ganham ares de um tributo explícito a determinados diretores tais como Claire Denis, Gaspar Noé, Quentin Tarantino etc., evocando uma sensação de déjà-vu.
Mas essa sensação de déjà-vu vai além das imagens, estando impregnada na própria proposta do filme. Como assinalado anteriormente, o roteiro apresenta várias camadas que atualizam a dubiedade do corpo contemporâneo e é nesse exato ponto que o filme não empolga. Não apenas pelo fato do roteiro não conseguir encaixar adequadamente todas as questões levantadas, mas, especialmente, por não conseguir avançar em nenhuma delas. Temáticas como a fluidez da identidade de gênero, a masculinidade tóxica, o desejo feminino e, especialmente, as transformações do corpo em direção a um organismo transumano perfazem os 108 minutos do filme, mas não acrescentam nada de novo, pelo contrário, mostram-se presas a definições datadas e insuficientes. O elo entre Alexia e Vincent se materializa na transformação corporal. Vincent, um homem na casa dos 60 anos, molda seu corpo à base de injeções de esteroides, exibindo, mais de uma vez, suas nádegas feridas pelas constantes aplicações. Alexia tem seu processo de transformação iniciado na infância com a introdução da placa de titânio em seu cérebro e efetua um percurso que inclui desde a adequação de seus cabelos a um corte “masculino” e o ajuste do nariz para ficar com o rosto mais parecido com o do rapaz desaparecido, até uma gestação metálica, onde passa a verter óleo de motor pelos seios inchados e pelo meio das pernas. Vários outros exemplos poderiam ser elencados, mas já temos o suficiente para detectar o que mais nos interessa aqui, o caráter mecânico desses corpos-máquinas, cujas alegorias de transformação permanecem presas a suportes orgânicos e materiais. Ao se propor a discutir as mutações do corpo contemporâneo que, por conseguinte, metamodelizam uma nova subjetividade, Titane opta por um “futurismo tardio” (grávida de um automóvel? sério?) que dá ao filme um ar anacrônico, algo como uma “jóia” esquecida dos anos 1980.
Um dos fatores que mais chama a atenção é a repercussão que o filme alcançou em Cannes. Descontadas as ações de marketing em expressões do tipo, “casos de mal-estar e crises nervosas entre o público nas projeções”, custa a crer que em plena segunda década do século XXI, época marcada pela circulação incessante de imagens cada vez mais excêntricas, Titane seja taxado de violento, intenso, controverso e, pior, original (Tetsuo [1989], de Shinya Tsukamoto, já abordava o corpo-máquina de uma maneira muito mais audaciosa). Desde os anos 1980, uma parte significativa da produção cinematográfica se encontra numa espécie de limbo, à procura de um caminho que supere o esgotamento do chamado “cinema moderno”, porém, a reciclagem excessiva de determinadas referências tem sido uma constante e essa prolongada elaboração do luto da Modernidade parece ainda estar longe do fim.
Uma das principais questões ao longo de todo o século XX foi levantada por Walter Benjamin e diz respeito ao modo como a técnica afeta a percepção sensorial do homem. O final do século passado assistiu ao acelerado desenvolvimento de aparatos tecnocientíficos que transformaram radicalmente a experiência sensorial humana, trazendo para o primeiro plano a demanda da transfiguração não apenas do corpo físico, mas, também, da produção de subjetividade e, nessa indagação, recorrer apenas ao choque mostra-se insuficiente.