OLHARES
Por Clementino Jr.
“A fragilidade dos vínculos humanos é um atributo proeminente, talvez definidor da vida líquido-moderna.”
(Zygmunt Bauman)
Biografia é definida por dicionários como o conjunto de fatos particulares da vida de alguém narrados, por exemplo, em um livro. A vida que tem menor valia nos tempos atuais é o da arrasadora maioria da população, ou seja, aqueles que não terão biografia. Mesmo quando alguns momentos se tornam mais marcantes que outros na biografia de alguém, me pergunto para quem, exatamente, esses momentos são marcantes? Seriam os fatos que são normalmente esquecidos ou ignorados pela pessoa menos importantes? O que qualifica um fato para ilustrar a biografia de alguém?
Os dois anos até o momento no qual escrevo — da Pandemia — se tornaram um divisor de água em muitas vidas, com um impacto ainda maior que tragédias como o Tsunami no Japão ou o 11 de setembro nos E.U.A. O Covid-19 conseguiu algo raro: uma degustação a todo o planeta do que é ter que se colocar no lugar do outro. Tivemos que perceber que o velho ditado, “pau que dá em Chico, dá em Francisco”, é sinônimo de uma questão de tempo para precisar se avizinhar — independente do quanto você se preserve, afinal, o mundo do capital não permite qualquer privilégio para um isolamento social adequado, porque a comida e o pataco não “brotam” em todas as casas. Além disso, o capital não permite o enriquecimento ilícito solitário. No mundo da exploração, para se fazer algo errado no sistema, é preciso uma rede de personagens para criar os fatos que serão marcantes nessa biografia de sucesso, ainda que passando a perna na sociedade.
A Pandemia revelou algo que me lembra a fala de um companheiro de lutas diante da possível vitória de um prefeito pastor anos atrás e com quem ele achava que deveria iniciar um diálogo: “onde há crise, há oportunidade”!
Onde se esperava uma conveniência dos governantes aproveitando o atraso da chegada do vírus para repetir as poucas práticas eficientes de outros países, escolheram a cartilha errada para alguns, mas perfeita para seus propósitos genocidas. Optaram por formar uma rede ideológica com poder e com o propósito de limpeza étnica, seja pelo contágio maciço garantido nos meios de transporte, nas comunidades controladas por tráfico e milícia ou mesmo por dificultar o acesso da população aos serviços públicos de saúde, deixando o SUS com pouca força e muita vontade de reverter o quadro, o que o conduziu à testemunha da chacina diária causada pela falta de prevenção. Os bombardeios constantes de violências verbais, ofensas à honra e imposição de pautas bombas quase que diárias no congresso nacional adoece qualquer pessoa sensível, deprime a massa — inclusive os apoiadores que elegeram o poder atual — e igualmente colocam a vida em risco.
A rede que alimenta o poder atual é formada por pessoas que veem as oportunidades no meio do caos e que querem resolver, em meses, desejos que nem com 100 anos de trabalho bom e com muita economia eles teriam. Tem pessoas com fome e outras pessoas que dividem o pão mais caro, de maneira nada bíblica e que acabam por deixar migalhas no caminho, atraindo insetos, ratos e todo tipo de bicho. Quando você encontra quem espalhou o pão, descobre quem distribuiu, quem comeu, quando comeu e a indigestão pode ser geral. Cada pedaço desse pão distribuído cria vínculos. E quando falamos dos consumidores desses caros pães, sabemos que comeram escondido para que a massa faminta não visse. A população já percebeu quem se ausentou da fila por comida e voltou satisfeito.
A crise sanitária piorou tudo o que não ia bem. E mesmo que haja o desejo de uma parcela da população pelo impedimento do atual governante — na esperança de seu sucessor não ser desagradável como o atual em sua estratégia de ataque e de defesa — um grupo se vê como elos da corrente que joga âncora para manter a barca no porto.
Deveríamos ler mais biografias de personalidades da política para ter a certeza de que, no jogo do poder, ninguém muda para melhor (é fato). É importante entender quais os fatos marcantes que fizeram o boi subir no telhado. Aprendendo como ele conseguiu chegar lá, podemos evitar que o restante do gado suba e desmorone a laje, frágil como prédio construído pela milícia, ou como o teto de vidro de quem mantém os seus links com o governo.