Em 2007, o Brasil instituiu o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, através da Lei Federal nº 11.635, de 27 de dezembro, em alusão à Ialorixá baiana Gildásia dos Santos e Santos – conhecida como Mãe Gilda –, fundadora do Terreiro de Candomblé Ilê Asé Abassá, localizado no bairro de Itapuã, em Salvador. Ela teve sua residência e seu Terreiro invadidos por um grupo de fanáticos que a acusou de charlatanismo.
No mês de outubro de 1999 o jornal Folha Universal, de propriedade da Igreja Universal do Reino de Deus publicou matéria intitulada “Macumbeiros e Charlatões lesam o bolso e a vida dos clientes”, com a foto de Mãe Gilda ilustrando o texto. A referida fotografia aparecia ao lado de recortes de folhetos que ofereciam serviços de ajuda espiritual para a resolução de problemas.
“Injustificável menosprezo”
A matéria da Folha Universal ressaltava que “o mercado de enganação” vinha crescendo muito no país. Essa publicação irresponsável foi o estopim para que um grupo de fanáticos invadissem e depredassem o Terreiro de Mãe Gilda. A Ialorixá teve agravamentos de problemas de saúde e faleceu poucos meses depois do ataque, em 21 de janeiro de 2000.
Mãe Gilda recebeu várias homenagens, a exemplo da instituição do Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, em 2007, e um busto localizado na Lagoa do Abaeté (que fica no mesmo bairro do terreiro), no ano de 2014. O referido busto, inclusive, sofreu ataques nos anos de 2016 e 2020, o último perpetrado por um homem que estaria, segundo ele próprio, “atendendo a um mandado de Deus”.
Apesar de o Artigo V, Inciso VI da Constituição Brasileira afirmar a inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença, assegurando o livre exercício dos cultos religiosos e a proteção aos locais de culto e as suas liturgias, a intolerância religiosa ainda é uma triste realidade no Brasil atual.
De acordo com o Instituto de Segurança Pública, do Rio de Janeiro (ISP-RJ), somente em 2020 houve a notificação de 1.400 casos que podem estar relacionados à intolerância religiosa. O órgão adverte que os números podem ser ainda maiores por conta da subnotificação. Na Bahia, o Centro de Referência de Combate ao Racismo e à Intolerância Religiosa Nelson Mandela, vinculado à Secretaria de Promoção da Igualdade Racial do Estado (Sepromi), atendeu 30 casos de intolerância e 11 casos correlatos no ano de 2021. Lá, são oferecidos apoio psicológico, social e jurídico às vítimas de racismo e intolerância religiosa na Bahia, desde o ano 2013.
Em 2021, a Bahia – cuja maioria da população é negra – teve a primeira confirmação de condenação em segunda instância por intolerância religiosa. Conforme o Ministério Público (MP) estadual, a pessoa condenada foi denunciada no ano de 2015 por prática de discriminação religiosa contra a Ialorixá Mildredes Ferreira, do Terreiro Oyá Denã (que morreu há 6 anos).
Ainda conforme o MP, o Tribunal de Justiça da Bahia decidiu que “a conduta representa injustificável menosprezo e preconceito dirigido, intencionadamente, contra toda a coletividade praticante do candomblé, havendo suficiente comprovação de que as expressões utilizadas pela denunciada implicam na exortação de indiscutível carga negativa quanto à referida religião de matriz africana”.
Estado teoricamente laico
Embora não sejam as únicas a sofrer com a intolerância, as religiões de matrizes africanas são as maiores vítimas. Os motivos dessa intolerância têm ligação direta com o racismo contra a população negra, um problema histórico cujos desdobramentos são variados.
A questão principal é que a escravidão incutiu no imaginário brasileiro que tudo o que diz respeito às pessoas negras está carregado de significados negativos. E os estigmas histórica e culturalmente instituídos criam esse desprezo por suas manifestações religiosas.
Aliado a isso, temos um Estado que, embora teoricamente laico, em sua prática cotidiana mostra-se amplamente vinculado aos valores cristãos. Basta vermos, por exemplo, nas instituições mais emblemáticas (poderes Executivo, Legislativo e Judiciário) símbolos cristãos que contradizem enfaticamente essa separação entre Igreja e Estado, instituída na primeira Constituição republicana, em 1891.
Não bastasse os fatores mencionados, o Brasil vive uma tendência crescente de religiões neopentecostais, as quais exercem, atualmente, grandes influências do ponto de vista político, econômico e cultural. Este último, inclusive, marcado pela força dos meios de comunicação massivos, a exemplo da televisão e do rádio, usados estrategicamente para arregimentar cada vez mais fieis, e, como vimos, para disseminar preconceitos ódio a outras religiões, sobretudo as de bases africanas, como o Candomblé a a Umbanda.
Apesar de grande parcela da população brasileira conservar alguma ascendência africana, a maioria não conhece suas raízes culturais, o que favorece sua desvalorização, discriminação e as consequentes agressões por grupos e indivíduos que, infelizmente, desconhecem o valor do diálogo, da compreensão, da aceitação das diferenças e diversidades.