Seria bastante apropriado para um professor universitário presumir que os alunos saibam que uma árvore tem vida e uma rocha não.
Não seria?
Por Beth Daley
Durante alguns verões, tive o prazer de ensinar Biologia a monges budistas tibetanos exilados na Índia. Esse programa, chamado de ETSI (Iniciativa Científica Emory-Tibete, em tradução livre), teve sua semente plantada pelo Dalai Lama e por pesquisadores da Universidade Emory (Atlanta, EUA) nos anos 90, e, desde então, vem florescendo como uma oportunidade para monges de todos as idades aprenderem sobre ciência.
As diferenças entre a biologia moderna e as crenças tradicionais budistas sobre a natureza podem parecer significativas – até mesmo em suas definições de “vida”. Na visão dos biólogos, animais, plantas e bactérias são considerados vivos. Por outro lado, de acordo com os ensinamentos monásticos tradicionais tibetanos, a vida é baseada na ideia de consciência. Bactérias e animais, incluindo os humanos, reconhecidamente possuem consciência, e, portanto, são considerados seres “vivos”. Já as plantas, segundo esses ensinamentos tradicionais, são desprovidas de consciência, sendo assim consideradas seres “não vivos”.
Mas, diferenças como essas me fizeram compreender fatores aos quais não dei muito valor na época em que lecionava na Universidade de Richmond (Virgínia, EUA) e como a aprendizagem pode ser rica quando recuamos e exploramos juntas as questões mais básicas – porém, as mais importantes. Pensar em como abordaria vários tópicos aos monges foi uma verdadeira lição para mim, a qual levarei para a sala de aula na Virgínia.
Enxergando a vida mais de perto
Eu estudo a relação entre bactérias e plantas. Na maioria dos cursos introdutórios à Biologia, os alunos universitários têm uma ideia intuitiva do que a ciência define como “vida”, a qual vem sendo formada desde o jardim de infância. Mas, e se os educadores não presumissem que os alunos “sabem” o que define um ser vivo – ou, melhor ainda, e se nós usássemos suposições para instigar questionamento?
Elaborar uma definição de “ser vivo” pode ser uma maneira eficiente de introduzir a pesquisa científica. Por meio de uma atividade em que os alunos classificam algo em categorias como “vivo/não vivo/já foi vivo”, eles podem explorar as questões mais controversas. Por exemplo, o vírus é um ser vivo? E a inteligência artificial? Como decidiríamos quando descobrirmos vida extraterrestre? Essas discussões filosóficas sobre a vida geram debates interessantes entre ambas as culturas.
Nos dois contextos educacionais, podemos utilizar as ponderações feitas pelos alunos ao observarem uma gota d’água de um lago sob microscópio para debater como cientistas formularam o conceito de vida, baseado nas seguintes características: algo que está formado de células, que tem a capacidade de se reproduzir, de crescer e de se desenvolver, que evolui, que utiliza energia, que responde a estímulos e que mantém a homeostase – uma forma de manter um nível apropriado de todo tipo de nutrientes e de grandes moléculas.
Dependendo do biólogo, algumas dessas propriedades podem ser excluídas ou incluídas, e, discutir se as incluímos na definição formulada pela nossa classe pode ser um processo interessante para os alunos. Além disso, nós frequentemente estendemos essa conversa para discutir como a definição de vida mudou durante a história humana, e também para considerar as questões que não cabem à Biologia responder, tais como a noção de alma ou o conceito de consciência dos budistas tibetanos.
Questionar
Aparentemente, também existem contradições entre as perspectivas dos cientistas e as dos monges com relação a outros assuntos. Por exemplo, os ensinamentos tradicionais budistas apoiam a geração espontânea – a ideia de que pode surgir vida a partir de algo não vivente –, que foi rejeitada por biólogos no século 19, levando em conta os experimentos de Louis Pasteur e outros pesquisadores.
Segundo as perspectivas dos budistas tibetanos, certas vidas, como vermes e bactérias, podem ser geradas pela “umidade”. Também na visão dos monges, todos os animais são sencientes, ou seja, possuem consciência, enquanto as plantas, não. É assim que, tradicionalmente, o budismo tibetano formula sua definição de vida.
Para explicarmos a visão dos biólogos, nós nos perguntamos: Como os biólogos podem explicar, de fato, o que caracteriza um ser “vivo”?
A chave é o método científico, baseado em testes e análises. No monastério, os instrutores de ciência abordam questões sobre a geração espontânea ou sobre a senciência por meio de perguntas mais sérias: Qual experimento você pode conduzir e que prove sua hipótese de que a vida surge da não vida? Quais controles você incluiria para dar confiabilidade a seus resultados? Como você aumenta a confiança em suas conclusões?
Essas conversas destacam que a base da ciência moderna – o método científico – é extremamente compatível com as práticas dos monges budistas.
Isso porque, em partes, o debate é fundamental para o monaquismo. Assim como o método científico, o debate requer que os participantes abordem as ideias com ceticismo e exijam “provas”. Todos os dias, os budistas tibetanos praticam o debate por horas. Assim que um monge desafia outro, eles repassam uma ideia religiosa para lá e para cá, com o intuito de desenvolver um entendimento mais profundo sobre o conceito.
Enquanto cientistas, nós não praticamos o debate formal. Contudo, exercitamos músculos semelhantes ao tentar compreender a fundo os processos da vida por meio de teorias, experimentação e desafiando ideias levantadas por outros cientistas.
Onde ciência e religião se encontram
Conforme avançamos, em qualquer tipo de sala de aula – no monastério ou na universidade – professores e alunos, às vezes, deparam-se com perguntas às quais a biologia não possui uma resposta satisfatória: Quais as origens da vida? Qual o propósito do sono?
Como professores, podemos usar questões como essas, que estimulam a curiosidade dos alunos, juntamente com outras extras sobre como religião e biologia estão interligadas. Embora alguns possam se ofender com a abordagem de questões teológicas em um curso de Biologia, trazê-las à tona pode engajar os alunos ao mesclar ciência com questionamentos profundos que eles possam ter com relação às próprias vidas. O que a biologia tem a dizer sobre a evolução das religiões? Como aquilo que aprendemos em biologia influencia o conceito de alma? Se nós acreditamos na ideia de alma, em quais organismos ela está presente?
Para os monges, essa última questão é crucial, já que o budismo ensina que toda vida é senciente e sagrada. Quando trabalhamos com os monges, nós, professores visitantes, tomamos muito cuidado para não descartar os microrganismos que inspecionamos no microscópio – o que ocorreria na Universidade de Richmond. Por respeito às suas visões, nós simplesmente despejamos esses microrganismos na grama do lado de fora. Os monges me presentearam com uma nova perspectiva sobre experimentação, incluindo reconsiderar a necessidade de utilizar certos organismos em pesquisas e em aulas.
A pesquisa científica certamente atravessa culturas. Quando afrontamos nossas diferenças, com transparência e compaixão, podemos atingir aprendizados mais significativos para ambos, professores e alunos.
Gostaria de agradecer a Geshe Sangpo Ia pelas percepções sobre o budismo tibetano que me ajudaram com este artigo.
Traduzido do inglês por André Zambolli /Revisado por Graça Pinheiro