CRÕNICA

Por Edna Tosath & Guilherme Maia

 

INTRODUÇÃO

ENTRE DUAS BELEZAS E DIMENSÕES FEMININAS

DE UM LADO O PALCO E A TRIBO,

DE OUTRO, O FLORESCER NANQUIM QUE CONTAMINA:

Esqueço até a dor de perdas de amor

Que a vida me trouxe e que sem dó levou.

MOLIÈRE, RACINE, RODRIGUES, ADERBAL SOBREVOAM A MULHER

A GENIALIDADE OGUATÁ DA AMIGA EDNA TOSATH

CAMINHO DO CULTIVO TELÚRICO

FORÇA QUE UNE PLATEIAS E ALDEIAS

CORPO E ESPÍRITO DIANTE DO ALTO PELA UNÇÃO DO URUCUM.

E O DESENROLAR DO NANQUIM NA FOLHA BRANCA

MÃOS DA MENINA PAULA A DANÇAR

…COMO ELA FAZ NASCER PESSOAS E CORES FRANCAS!

POR QUE A BELEZA ESTÁ NA CRIAÇÃO,

NÃO HÁ MEDO OU RECRIMINAÇÃO

NESSA MULHER DENTRO DA MENINA SEM PAR.

PORTANTO, ESTOU NESSE ESPAÇO

QUE VAI DO TEATRO AO FAZER INDÍGENA CULTIVADO

SEGUE E CAMINHA A TERRA E SENTE O ESPÍRITO E FADO

DO TEMPO,

– QUE À NOSSA LIMINTAÇÃO CULMINA.

Assim também a mulher da arte encerrada na menina dos astros –

Aquela que desenha e me prende e me faz amar explodindo em faustos!

Sim, ó Divindade das Artes, aqui estar me determinas

ENTRE DUAS BELEZAS E DIMENSÕES FEMININAS!

Ouve-se de longe o som de freadas de pneus seguidos de uma colisão. Desde que a recente construção da autoestrada chegou rasgando o bairro dos Ipês, atravessando toda a cidade de BH, os acidentes na rodovia tornaram-se corriqueiros. André, jovem de 23 anos, caminhava pelas ruas na madrugada e quando ouviu, à distância, o barulho do embate, presumiu a dimensão falando para si – “esse acidente foi feio”. Dia seguinte, logo pela manhã, o acidente era comentado entre os moradores do bairro, os jornais periódicos de TV noticiavam… “Perdemos nessa madrugada o grande pianista Luiz Paulo de Castro em acidente na movimentada rodovia 247 – motorista transportando grãos de café dorme ao volante do caminhão colidindo com seu carro quando viajava com esposa e filha”. Quando o acidente era divulgado, o jovem André dormia profundo.

Mantido financeiramente pelos pais ausentes, André levava a vida sem regras, livre e solto. Acabara de fazer, pela terceira vez, exames para cursar engenharia ambiental, dessa vez, apostara fazer os exames também em faculdades fora de sua cidade. Não se abalou nenhuma das duas vezes quando soube que foi reprovado, simplesmente passou a dizer aos quatro ventos…

“Um dia eu entro”.

André era mesmo boêmio, gostava de sair à noite para encontrar com os amigos bon vivants iguais a ele, que iam se juntando, de boteco em boteco em busca do local mais animado da noite. Descoberto o lugar, só o deixavam para ir atrás das paqueras encontradas no divulgado baile do clube da cidade. Caso contrário, lá ficavam discutindo posições dos seus times nos campeonatos de futebol, recontando às gargalhadas histórias travessas que viviam juntos, disputando com palitinhos de fósforos nas mãos quem pagaria a próxima rodada da cerveja. Os amigos que abandonavam o adentrar a noite, ao se despedirem, de imediato ouviam de volta o jingle em coro dos que permaneciam na paragem…

“a noite é uma criança… a noite é ainda uma criança”.

Até mesmo quando os garçons já começavam a esguichar a água da mangueira para lavar o piso os expulsando do recinto, recusavam-se a deixar o local antes de ver o dia raiar. Ignoravam o garçom com seu jato de água que ia se acumulando por debaixo das mesas, em volta dos seus pés que, depressa, eram levantados para serem postos acima das cadeiras vagas ao lado para proteger os tênis secos. A seguir, logo se ouvia ecoar no ambiente o grito do pedido…

“Garçom solta aí mais uma, mas traz aí aquela bem geladinha”.

O dia nascia e prontamente André voltava pra casa para imediatamente se jogar na cama, enterrar a cara nos travesseiros para não sentir o dia que não lhe pertencia. O jovem notívago só abriria agora os olhos para a boca da noite para ir ao encontro dos amigos. Para aspirar dama da noite, jasmim poeta, desvendar

pirilampos enquanto caminhava pelas ruas cantarolando na madrugada. Assim levava a vida alforriada até perceber, da noite pro dia, que seus pensamentos principiavam interromper seu canto para indagar seu futuro que, de tempo em tempo mais contemporizado, acabaram por substituir de vez sua canção noturnal. Principiou a sensação de quase sempre desânimo, mesmo estando no boteco mais animado da noite. Já não gargalhava como antes das travessuras que passou mais ouvir do que contar. Acaba por perceber que das histórias das traquinagens que narravam ele não havia vivenciado e, por fim, se sentiu excluído. Deslocado dos ambientes noturnos que ele sempre frequentou, André começa a compreender que os amigos de antes não estavam mais ali à volta da mesa e que só restara ele entre rapazes bem mais jovens que ele. Nessa noite quem se despede da madrugada antes do dia raiar agora era ele, ouvindo o jingle que tanto cantou… “A noite é uma criança”… “A noite é ainda uma criança”… Regressa a casa proferindo pra si… “Estou partindo tarde”.

Antes tarde do que nunca, André pode agora escolher entre duas faculdades onde quer ingressar. Matutou, matutou para, no final, concluir que seria mais fácil pra ele se morasse longe do ambiente boêmio, para então se dedicar firmemente aos estudos, compensando, talvez o tempo perdido. Decidido dar um novo rumo à vida, resolve então deixar pra trás a mina enamorada, a família e os amigos para se matricular na faculdade de engenharia ambiental, localizada distante de sua cidade.

Logo que se instala na mais nova cidade, uma jovem bonita de estilo exótico que costumava circular nas ruas do bairro onde escolheu morar lhe chama atenção. Durante suas caminhadas para conhecer o seu mais novo habitar, um dia André resolve seguir veladamente a jovem por onde ela caminhava. Surpreende-se ao se deparar com a jovem que, depois de equipada de luvas e um pegador de cabo regulável de gancho nas pontas nas mãos, recolhia o lixo que via jogado no chão.

Na praça, aos finais de semana, onde o movimento dos visitantes costumava ser mais intenso devido ao acervo de arte sacra da igreja matriz, para chamar atenção daqueles passeantes que jogavam seu lixo a esmo, a jovem se aproximava e chocalhava as diversas pulseiras que carregava nos braços. Depois de tilintar os adereços sem agressividade, lentamente apanhava o lixo do chão e colocava em saco plástico grande ou, quando próxima, nas lixeiras seletivas distribuídas nos cantos da praça.

A jovem era considerada pelos moradores como “a doida da vila”. Aquela que catava das ruas o lixo que os moradores e visitantes jogavam no mesmo ambiente em que viviam. Já incomodado com esse despropósito de julgamento dos moradores com a jovem, quando chegado o momento de escolher o tema de sua dissertação na universidade, André elege essa questão para desenvolver. Para acrescentar às pesquisas sobre o tema que elegeu, ele se aproxima da jovem e os encontros se intensificam com o tempo, a ponto de o padeiro dizer para o açougueiro que o jovem estava interessado na doida da vila. Já o açougueiro, dizia para o jornaleiro que achava que ele era doido como ela. Os meninos no ir e vir do colégio, ao cruzarem com os dois sentados no banco da praça, gritavam em coro: beija… beija… beija! As mulheres, quando levavam suas crianças à escola, saíam puxando os filhos pelos braços com pressa, só para ter mais tempo de sobra antes de voltar para casa, para poderem ficar nas esquinas paradas e fofocar sobre a relação dos dois. Desse modo, no buchicho, os moradores da vila passavam seus dias tentando descobrir qual era mesmo o interesse do jovem estudante com a doida da vila, já que eles não se desgrudavam mais: seguiam subindo e descendo ladeiras, conversando sentados no banco da praça.

No mês de julho, os dias na vila ficavam mais parecidos com um formigueiro ativo, em função dos preparativos para festejar o dia do santo padroeiro que estava preste a chegar. As mulheres se reuniam num entra e sai constante das casas para confeccionar as bandeirinhas, preparar os quitutes para a quermesse, organizar as prendas arrecadadas de doações para distribuí-las nas receptivas barracas executadas de bambus e montadas pelos homens na praça. Dias antes da festança já vinham chegando os parentes com as novidades encomendadas para os adereços dos figurinos comprados em cidade grande e para ajudar nos preparativos finais da festa e participar da procissão que aconteceria na véspera do dia do festejo.

Para que o santo padroeiro pudesse percorrer as ruazinhas da vila em frente à procissão, as rezadeiras confeccionavam com papéis crepons coloridos flores e folhagens para decorar seu andor. Na igreja, ensaiavam as litanias, confeccionavam asas de anjos para que as crianças, vestidas de arcanjos, pudessem acompanhar o santo em cima do andor carregado pelos moços da vila. Portas e janelas das casas da vila também eram enfeitadas de flores, para que, em frente, os enfermos prostrados agarrados aos seus crucifixos pudessem receber, quando o santo passasse, a benzedura junto à fumaça do incenso queimado vindo do Turíbulo fumegante manuseado pelo coroinha da igreja. Depois que a procissão percorria as ruelas da vila, o santo era entregue ao padre na igreja seguido das badaladas dos sinos que se principiavam a soar. Ribombavam à distância os gongos para avisar os enfermos ausentes, para que pudessem acompanhar de suas casas. O início da missa era transmitido do autofalante fixado na torre da igreja e neste dia o padre vestia batina nova, bordada de lantejoulas douradas, frente e verso, com o semblante do padroeiro.

No último domingo do mês de julho, às duas badaladas do sino, duas da tarde, finalmente dava-se início à festa tão esperada do ano. Logo as criançadas irrequietas agarradas às grades da cerca da praça, já podiam adentrar os portões abertos em algazarras para participarem das brincadeiras que durariam a tarde inteira. Aos gritos, entre as barraquinhas decoradas por bandeirinhas coloridas, crianças em torcidas incentivam quem, da vez, tentava com a varinha de pesca fisgar o brinquedo que antes já escolhera, entre tantos, enganchados nos rabos dos peixinhos de plásticos coloridos mergulhados no quadrado grande de madeira cheio de serragem. Na barraca do tiro ao alvo, um bando de crianças munidas de bolas de retalhos de panos coloridos nas mãos fazia poses para acertar a mira da boca aberta avivada do palhaço pintado sobre a folha de madeira de compensado. Num vai e vem durável se via, por todo canto da praça, cardumes de crianças tentando se equilibrar sobre pernas de pau. E assim, desse modo girante de crianças sobre pernas de pau, também se via, lá do alto, sorrisos infantis lambuzados de cristais que refletiam com os raios do sol o açucarado do algodão doce colorido nos rostos com bocas de contornos escarlate do brilho da groselha da cobertura da maçã do amor.

Ao cair da tarde, mais à noitinha, moças e rapazes já começavam a dar seus ares de graça na festa. Investindo na paquera, moças andavam em círculos ao entorno do coreto da praça para desfilar seus novos trajes ornados para os jovens, também bem trajados, debruçados na balaustrada do contorno do coreto, sentados nos bancos, encostados nas árvores e fazendo poses pra elas. Homens se aglomeravam em volta da barraca das argolas, barraca também escolhida, de última hora, para as apostas improvisadas do jogo de adivinha. Convictos, alguns moradores apostavam que a relação entre o universitário e a jovem era de namoro, já outros, apostavam que entre eles só existia mesmo amizade. Por fim, a monografia do jovem André é apresentada à faculdade; posteriormente, indicado por um professor a uma editora, um livro é publicado, logo se acresciam os convites de empresas e universidades do país com o jovem escritor palestrante.

Os dois jovens já não são mais vistos juntos.

Ao retornar de uma de suas viagens, André encontra, junto às suas correspondências, uma maleta encostada aos pés do aparador da sala, a qual ele imediatamente reconhece. Nota, amarrado à alça da maleta, um envelope grande, pardo e grosso, e anexado a ele, um bilhete. Sorri ao recordar dos garotos da vila que, para brincar, pegavam e jogavam aquela maleta para outro garoto pegar, assim provocava a jovem a correr de um lado para o outro freneticamente até que conseguisse pegar sua maleta de volta. Os meninos empolgavam-se com a brincadeira aos gritos de olé, olé, olé na praça atrás da igreja. Só paravam com a brincadeira quando o padre os detinha para que devolvessem a maleta a ela.

Grudada àquela maleta, a jovem subia e descia ladeiras, carregando as pomadas manipuladas e os remédios de primeiros-socorros que usava em curativos que fazia em crianças quando caíam em terra batida, correndo atrás de bola, atrás de pipas, nos ferimentos dos animais de rua. Enquanto cuidava dos doentes, recitava poesias para acalmá-los da dor que sentiam no momento.

Desamarra o envelope pardo da alça da maleta e lê em voz alta o bilhete que vinha anexado a ele. “Por favor, caso aconteça algo comigo, quero que seja entregue a maleta junto ao envelope pardo ao jovem escritor Marco André Arara”. Naquele momento seu coração aperta e dispara. Recorda da fisionomia da jovem sempre alegre ao andar pelas ruas e ladeiras da vila. Emociona-se. Rasga a borda do envelope, encontra dentro um molho de chaves. Com a chave menor, abre a maleta que antes deitara sobre a mesa de centro da sala quando pegou. Repara por cima dos pertences uma carta endereçada a ele. Temeroso em abrir o envelope, caminha no ambiente da sala de um canto ao outro abanando a carta na mão. Resolve, de repente, jogar a carta em cima do aparador, junto a outras correspondências, para depois se sentar no sofá.

Começa a remexer nos pertences sem retirá-los da maleta. Nota os remédios de primeiros-socorros, as pomadas, um chapéu, uma sombrinha, sacos plásticos e o pegador de cabo regulável de lixo, um caderno de capa dura, um bloco de rascunhos, uma pasta vermelha de elástico, recortes de revistas presos com clipes, algumas canetas de cores diferentes dentro de uma pequena bolsinha de plástico transparente. Escolhe pegar entre os pertences o caderno de capa dura. Acomoda-se com as costas e a cabeça rente ao encosto do sofá. Lentamente folheia as páginas do caderno até que, intrigado, principia a virar e desvirar as mesmas páginas por diversas vezes. Ainda incomodado, deixa o caderno aberto em cima da mesinha e se encaminha para apanhar o bilhete do envelope pardo que havia jogado no cestinho de lixo minutos atrás depois que o leu. Desfaz com as mãos a bola do bilhete que amassou, alisa o papel sobre suas pernas para desamassá-lo. Após isso, meticuloso confronta a caligrafia do bilhete alisado com a escrita das páginas do caderno de capa dura. Repete a conferição de ambas as escritas por algumas vezes e, por fim, descobre surpreso, o que até aquele momento ele não sabia e nem podia nunca imaginar: as poesias que a jovem costumava declamar eram de sua autoria. Apaixonado com a descoberta folheia as páginas agora com o semblante fulgente determinado na busca da poesia que ele mais gostava de ouvir. E em voz alta inicia a declamar a poesia escolhida enquanto brinca com o chapéu em frente ao espelho da sala:

VIDA

Teria vivido menos

ah, se teria!

Se ela não abrangesse

em tempo de vida

a magnitude que é

satisfazer corpo e mente

submergir a natureza

consentir simplesmente

o tempo passar

puro fluentemente

tempo de vida

granjeado a pujança

do Sol

das Estrelas

da Lua

do Vento

contemplando

a chuva abluir a natureza

acalentar

abraçar serena

transportar a alma

dimanar poesia

De volta à maleta, escolhe pegar agora a pasta vermelha de elástico. Encontra folhas arquivadas, por ordem de datas, de anotações sobre o tema que costumavam debater em seus encontros. A leitura o transporta às lembranças com detalhes de momentos que vivenciaram juntos. Já saudoso de seus encontros movidos pelas lembranças, busca a data da última folha arquivada na pasta para verificar quando tinha sido a última vez que se viram. Assusta-se ao se deparar com o tempo que não sentiu passar tão depressa. Investiga-se em pensamentos se alguém lhe perguntasse minutos atrás quando tinham se visto pela última vez. Sem titubear responderia que teria sido há pouco tempo atrás. E se duvidassem de sua resposta ainda seria bem capaz de jurar de pés juntos dizendo: “Estivemos juntos outro dia conversando, sentados no banco da praça”.

E exclama: “Como o tempo voa”

Lágrimas brotam e rolam pelo seu rosto.

Volta-se contemplativo ao se perguntar: “Por que choramos quando perdemos alguém com quem há tempos não mais convivemos? Serão estas lágrimas porque percebemos que não teremos mais tempo agora, como pensávamos antes ter, para poder resgatar a amizade? Ou será mesmo porque se aproveita do momento da morte de alguém para poder chorar o que no tempo se guardou por orgulho de sentimentos doídos que não chorou ainda?

Torna-se de volta, as anotações arquivadas. Percebe que a jovem pesquisava com rigorosa disciplina sobre o tema. Explicava-se ali agora o que ele questionava, não compreendia antes por subestimá-la. Como podia a jovem discorrer com ele sobre a questão do Meio Ambiente com tanta inteligência? Por fim, André pasmado constata que estava escrito lá, naquelas folhas arquivadas da pasta vermelha de elástico, praticamente o livro que o tornou famoso, o livro que o afastou dela.

Consciente da necessidade urgente de disseminar mais informações sobre o meio ambiente entre crianças e adolescentes, a jovem se informava como podia, através de reportagens de jornais e revistas que recortava, ouvindo de um pequeno rádio de pilha entrevistas com biólogos, ambientalistas, sobre reciclagem, desenvolvimento sustentável, enfim, tudo que abrangesse sobre o tema. Todo primeiro sábado do mês se reunia com crianças e jovens na praça para informar a elas o que investigava e assimilava sobre a questão. Com o pretexto de distribuir roupas e brinquedos que conseguia de doações das pessoas, dos comércios da redondeza e aproveitava da ocasião, para mostrar a elas a importância que é adquirir bons hábitos na nossa rotina diária para melhor cuidar e preservar o ambiente em que se vive. E para que a criançada pudesse assimilar as informações propagadas nesses encontros interatuava com elas e apontava exemplos de impactos poluentes causado pelo homem na natureza. Para cada brinquedo doado exigia em troca um saco de lixos recolhidos das ruas, da praça, das margens largas do rio raso de pedrinhas que passava na vila.

Empolgadas, as criançadas, já antes matutadas, depois de equipadas de luvas nas mãos, se empenhavam a recolher sacos e mais sacos de lixos da redondeza, proporcionais às quantidades de brinquedos que queriam receber em troca. Cada encontro era uma disputa entre as criançadas para ver quem conseguiria ganhar mais prendas naquele dia. A notícia da data do encontro de sábado já corria longe na vizinhança da vila. A cada encontro se via brotar crianças que vinham de lugares mais distantes. Já eram tantas crianças reunidas num só dia na praça que até despertara no padre a iniciativa de oferecer nesta data do mês o lanche da tarde. Mas o lanche só era servido depois que as criançadas fizessem as orações com o padre dentro da igreja.

Resistente ainda em abrir o envelope da carta, André se dirige então à cozinha e prepara a cafeteira para fazer um café. Enquanto aguarda o café ficar pronto abre a janela. Meditativo, permanece ali mesmo, parado com o olhar elusivo pra fora da casa. Pompons brancos de sementes se entremeiam em meio a flores vivas do amarelo dourado da mesma planta dente de leão se destacando em pendões, entre folhas secas que rolam com o vento sobre a grama alta não podada do seu jardim que lhe afugentam seu olhar antes vago. Lembra-se de sua infância com os amigos brincando nos jardins em frente de suas casas. Quando um deles achava um pompom branco no jardim, todos os outros amigos corriam para ver, ajudar a assoprar sementes de flores de dente de leão viajar longe. O apito da cafeteira o desperta para desligar a chama do fogão. Pega no armário acima, ao lado do fogão, uma caneca, se serve do café, decidido, agora, a pegar a carta em cima do aparador da sala para ler.

De volta à cozinha com a carta na mão se serve mais do café, senta-se em uma cadeira em frente à mesa, abre a carta e lê:

“Caro amigo, agora escritor,

Senti falta de nossas prosas, mas depois que vi seu livro exposto nas livrarias fiquei muito feliz. Li o livro, gostei muito pela forma educativo-reflexiva como você o ordenou. Tenho certeza de que ele será importante para a educação de tantas crianças e jovens. Que tal a distribuição do livro em escolas públicas? Análoga à leitura do livro em salas de aula, que tal a montagem de uma instalação cultural interativa de educação ambiental que provoque no público visitante, ao se confrontar com os espaços-cenários, a reflexão sobre seu comportamento com o ambiente em que vive?

Quero que fique tranquilo quanto à edição do livro sem ter mencionado nos créditos minha participação. Justamente por acreditar que haveria a possibilidade de poder com você esparzir mais sobre a questão é que aceitei seu convite para falar sobre o tema. Sentia-me segura quando lhe transcursava minha posição sobre o assunto que, desde criança, meus pais e avós já me sensibilizavam. Pressenti também que junto com você podia realizar o que tanto desejei na vida: publicar um livro. Mas já sabia antes que, sozinha, seria impossível realizar esse sonho, afinal, sou considerada pelas pessoas à minha volta como a doida da vila. Portanto, já me dou por satisfeita e feliz por você ter publicado o livro, por você ter confiado em discorrer comigo sobre a conduta do homem com o seu meio. Agora que o livro faz tanto sucesso, acredito que posso fazer-lhe alguns pedidos, afinal, me considero coautora da obra.

Busque apoio para implantar na vila:

– Uma veterinária que recolha e cuide, para adoção, animais de rua;

– Instale um centro cultural dirigido por profissionais da área ambiental, contendo programações culturais e oficinas permanentes de reciclagem e artes administradas por arte educadoras e artesões que ensinem a criançada a construir os seus próprios brinquedos”.

A jovem termina a carta lhe fazendo mais dois pedidos: que o jovem escritor cuidasse do seu canto e também do entorno dele. Para orientá-lo a chegar ao local, desenha um mapa e esboça, ao lado dele, uma trilha com a ressalva:

“Após conhecer meu canto, segue a trilha esboçada ao lado do mapa. Peço-te, como amiga, que mantenha sempre vivo este local que, com 15 anos de idade, iniciei fazer junto com meus avós logo que fui morar com eles. Sua formação foi tão importante para minha superação emocional quando, nessa idade, perdi meus pais num acidente de carro quando saíamos de férias para visitar meus avós que viviam próximo à vila. Meu avô era guarda florestal deste local, meu pai, filho do meu avô, era o pianista reconhecido nacionalmente, Luiz Paulo de Castro”.

O jovem André fica atônito, imediatamente se desloca mentalmente para o mesmo local onde ouviu o barulho da batida naquela madrugada no dia do acidente. Emocionado e atarantado repete por diversas vezes em voz alta andando pelos cômodos da casa… “Eu estava lá… Eu estava lá e ela também”…

Dia seguinte, ainda emocionado, André se apressa ao sair de casa. Segue na direção orientada pelo mapa, se sentindo egoísta, afinal, nunca em sua convivência com a jovem se preocupou em saber dela se tinha ou não um lugar para dormir, nunca se interessou conhecer a história de sua vida.

Ao chegar ao local descrito no mapa, encontra uma gruta logo no início de uma floresta urbana. Logo à frente da gruta visualiza uma porta grande de madeira maciça. Ao centro, há pendurada uma tabuleta de madeira oval com flores coloridas pintadas nas bordas e talhado ao centro: “Pisando em Flores”.

Com o molho de chaves nas mãos trêmulas, tenta com a chave menor abrir primeiro o cadeado da corrente que envolvia a trava fixada à porta, depois, com a chave maior, abre a fechadura da pesada porta que range ao empurrá-la. Entra no ambiente com respeito, embora, já dentro do espaço rochoso de forma côncava, demonstre estar bastante curioso. Depara-se no espaço com poucos objetos, o suficiente para sobreviver, tudo muito limpo, bem organizado e aconchegante. Ao lado esquerdo do ambiente de quem entra vê-se um antigo fogão esmaltado de lenha com uma chaleira acima, uma pequena pia, ao lado um tripé porta panelas de alumínio contendo algumas panelas bem areadas penduradas. Chumbado à parede mais aos fundos, ainda deste lado esquerdo, uma arara de alumínio em formato de L segura uma cortina com flores salpicadas de margaridas pintadas sobre o plástico azul. Mais adiante, no centro mais curvo do ambiente, grafites contornam algumas de suas poesias escritas na parede de pedras e faz-se a vez da cabeceira da cama. Servindo de divisória da cozinha com a cama coberta por uma colcha confeccionada de pequenos recortes redondos de retalhos de panos coloridos, que faz lembrar-se logo de confetes de chocolates coloridos, há uma estante feita de caixotes pintada de branco que expõe revistas e livros. Ao lado direito, quase rente à parede, nota-se uma tábua comprida sobre dois cavaletes. Acima dela, poucas peças de roupas dobradas, cadernos, blocos de rascunhos, uma lapiseira, uma cestinha trançada de cipó com algumas pulseiras, um radio de pilha pequeno e a única cadeira amarela encontrada no recinto, encostada na mesa improvisada pintada de vermelho. No centro do espaço, sobre um tapete grande retangular tricotado de barbante que aquece o piso frio de pedra, encontra uma mesinha retangular e, sobre ela uma toalha de crochê branca, uma lanterna, um castiçal de pedra com uma única vela de cera de abelha, um porta-retratos dela adolescente com os pais, uma pedra de cristal, uma estátua de um pequeno Buda e um pequeno vaso com flores do campo encontradas já murchas. Em volta da mesinha há caixotes que servem de acentos pintados de cores bem clarinhas em amarelo, verde, lilás e azul, e quatro pequenas almofadas da cor violeta acima deles. Alguns metros antes de sair do espaço, logo após a mesa improvisada sobre os dois cavaletes, ganchos talhados de galhos de laranjeiras fixados na parede seguram alguns chapéus, duas sombrinhas, saias e vestidos, quase todas as vestes ornamentadas de lantejoulas, fitas e flores coloridas de seda.

O jovem identifica a vestimenta e os adereços usados por ela na última festa em que estiveram juntos. Recorda-se dela radiante aos exibi-los, rodopiando por toda a praça ao ritmo das músicas que ela mesma costumava se dedicar e que nunca descobriram. Somente o padre que controlava as músicas que as pessoas pediam para tocar a fim de oferecer a algum pretendente na festa sabia disso. Quando ela ouvia seu nome sendo anunciado pelo alto falante da torre da igreja e, em seguida, sendo tocada a música que ela mesma escolhera, rodopiava, rodopiava de alegria. Sua alegria era tanta que contagiava toda a gente presente que ia se agregando na formação de uma corrente de mãos dadas entrelaçadas que se expandia por toda a praça no movimento de sua dança. Logo dilatava também de ouvido em ouvido dentro da corrente de mãos dadas o burburinho de que aquela música tocada tinha sido ofertada a ela por aquele jovem.

Igualmente tomado de recordações e emoções, André se delibera a seguir a segunda trilha traçada do mapa. Até que, de repente, no final da trilha suas lembranças são bruscamente interrompidas para serem substituídas por uma imagem em policromia de um vasto campo de plantação de variedades de flores. Ali estavam elas, as flores que a jovem distribuía nos finais de semanas a tantos casais de namorados nos restaurantes, sentados nos bancos da praça da vila. Nada pedia ela em troca pelas flores oferecidas, simplesmente as distribuía para incentivar mais o amor entre as pessoas — respondia ela quando lhe perguntavam por que não as vendia. Quando recebia alguns trocados eram dados por vontade própria das pessoas. Com o dinheiro comprava os remédios de primeiros-socorros e o básico para a sua sobrevivência. As pomadas medicinais ela mesma manipulava com as ervas que cultivava as quais aprendeu a preparar com os avós.

Extasiado pela fusão de cores de flores dos canteiros ao seu redor, André sente como estivesse naquele instante se utilizando de um caleidoscópio. Já entre o extenso campo colorido, em estado de deslumbre, aspira fundo o perfume exalado no ar. Sente invadir em suas narinas, agora dilatadas, variedades de cheiros de flores. Parecia até que as multiplicidades de fragrâncias disseminadas no ambiente em competição corriam atrás do vento para que, assim, ao pegar a última lufada, pudessem seu bálsamo permanecer mais tempo no ar. Subitamente tomado pela mesma alegria da jovem corre de braços abertos entre perfumes exalados do cultivo das flores. Corre, corre, corre como se ansiasse abraçar toda a plantação, emitindo repetidos gritos que, conectados à multiplicidade de cores de flores em fusão com intensos tons do vermelho alaranjado e dourado do pôr do sol no infinito, ecoam no ambiente: “Pisando de boteco em boteco para Pisando em Flores… Pisando em Flores… Pisando em Flores”

Texto de Edna Tosatth