Repórteres sem Fronteiras relataram que a liberdade de imprensa foi restringida parcial ou totalmente em dois terços do planeta. Um alerta de que os regimes autoritários usaram a pandemia para “aperfeiçoar seus métodos de controle totalitário da informação” e como pretexto para impor “legislação especialmente repressiva com disposições que combinam propaganda com repressão de divergências.” (Imagem por Miriam Gathigah/IPS)
Por Ed Holt
No dia 3 de maio é celebrado o Dia Mundial da Liberdade de Imprensa. Esta matéria faz parte de uma série que destaca o estado atual da liberdade de imprensa em todo o mundo
O jornalismo independente enfrenta uma repressão crescente em um ano de pandemia da COVID-19, enquanto governos do mundo todo restringem o acesso à informação e silenciam reportagens críticas, mídia e limitam direitos conquistados por jornalistas investigativos.
Os regimes autoritários têm utilizado legislações existentes e novas para atacar, intimidar e prender repórteres sob o pretexto de agir para proteger a saúde pública, conforme alegam os jornalistas. Eles temem que a situação não melhore em muitos países se e quando a pandemia acabar.
“Ditadores e líderes autoritários se aproveitaram da COVID para reprimir o jornalismo independente e as críticas. Alguns, em vez de combater o vírus, voltaram sua atenção para combater a mídia.
“Países como Camboja, Rússia, Egito e Brasil tentaram desviar a atenção de seus fracassos em lidar com a crise de saúde, intimidando ou prendendo jornalistas,” conforme relata Rob Mahoney, Diretor Executivo Adjunto do Comitê para a Proteção dos Jornalistas.
Nos últimos meses, uma série de relatos destacaram como a liberdade de imprensa foi restringida em muitos lugares durante a pandemia.
Em fevereiro, a Human Rights Watch divulgou a notícia “A COVID-19 desencadeia uma onda de abusos à liberdade de expressão”, mostrando como mais de 80 governos utilizaram a pandemia de COVID-19 para justificar violações dos direitos à liberdade de expressão e reunião pacífica. Com jornalistas entre os afetados, autoridades atacaram, prenderam, processaram e, em alguns casos, mataram críticos e fecharam os meios de comunicação, enquanto promulgavam leis vagas que criminalizavam o discurso que, segundo eles, ameaçava a saúde pública.
Em abril, os ativistas globais pela liberdade de imprensa do International Press Institute (IPI), divulgaram uma notícia que mostra um quadro igualmente sombrio e detalha o abuso físico e verbal de jornalistas que trazem informações sobre a COVID-19 ao redor do mundo.
E nesta semana os Repórteres sem Fronteiras informaram que o jornalismo foi restringido parcial ou completamente em dois terços do planeta.
Um alerta de que os regimes autoritários usaram a pandemia para “aperfeiçoar seus métodos de controle totalitário da informação”, e como pretexto para impor “legislação especialmente repressiva com disposições que combinam propaganda com repressão de divergentes.”
Também foi destacado como legislações foram desenvolvidas para tornar crime a publicação de “notícias falsas” relacionadas a relatos de coronavírus, e como a COVID-19 foi usada como pretexto para intensificar a censura e vigilância na internet.
Em alguns países, as autoridades proibiram a publicação de números da pandemia não provenientes do governo e prenderam pessoas por divulgarem outros números. Em outros, como na Tanzânia, chegaram a impor um ocultamento completo de informações sobre a pandemia, afirma o grupo.
Os problemas não se limitam a uma única área do mundo, conforme os relatos do grupo. No entanto, algumas das restrições mais severas foram observadas na região da Ásia-Pacífico e na África.
Jornalistas que atuam nessas regiões disseram ter visto um enfraquecimento na liberdade de imprensa no ano passado.
O próprio correspondente da IPS e jornalista premiado em Uganda, Michael Wambi, disse que o governo utilizou limitações da pandemia, implementadas para toda a população, para deliberadamente restringir as reportagens dos jornalistas.
As eleições presidenciais foram realizadas em janeiro no país e, conforme informou Wambi à IPS, ocorreram “ataques direcionados a jornalistas com a intenção de impedi-los de cobrir os principais candidatos da oposição”.
Jornalistas foram atacados com violência pela polícia nos eventos. Posteriormente, os policiais acusaram repórteres de violar as restrições da COVID-19 ao participarem de tais episódios.
Wambi mencionou que o chefe da polícia de Uganda, Martin Okoth Ochola, fez piada da situação.
“Ele brincou com os jornalistas que ‘as forças de segurança continuariam batendo neles para mantê-los fora de qualquer perigo [para a saúde deles]’”, revelou Wambi.
Stella Paul, jornalista premiada da IPS na Índia – que a RSF descreve como um dos países mais perigosos do mundo para jornalistas – disse à IPS: “Na Índia, as restrições da COVID eram basicamente usadas como desculpa para intimidar jornalistas”.
Grupos de liberdade de imprensa dizem que o governo indiano aproveitou a crise do coronavírus para aumentar seu controle sobre a cobertura de notícias, usando ações legais contra jornalistas que relataram informações sobre a pandemia divergentes da posição oficial.
No início da pandemia, o governo abriu uma série de processos judiciais contra jornalistas por relatos sobre os efeitos do bloqueio imposto sobre os trabalhadores migrantes, enquanto um editor de um portal local de notícias foi preso e acusado de insubordinação por escrever sobre uma possível mudança de liderança do país após um aumento nos casos de coronavírus.
“No ano passado, muitos jornalistas foram presos enquanto tentavam obter informações precisas e descobrir o que estava acontecendo, para relatar a verdade sobre a pandemia”, contou Paul.
Paul, que também escreve para a IPS, coopera com vários outros jornalistas em toda a Ásia e diz que a situação da mídia independente, na maioria das outras partes da região, é igualmente perigosa.
“É a mesma coisa em muitos outros países. O que temos visto durante a pandemia é um monte de jornalistas, não apenas na Índia, se perguntando ‘o que acontecerá se eu fizer uma reportagem sobre algo? Será que serei preso?’ Eles têm medo de serem presos,” disse ela.
Um país em que a liberdade de imprensa é vista como particularmente limitada é Bangladesh. Ele ficou na posição 152 de 182 no Índice de Liberdade de Imprensa de 2021, da RSF. O grupo relatou que houve “um aumento alarmante na violência policial e civil contra repórteres” durante a pandemia, com muitos jornalistas sendo presos e processados por suas reportagens.
Isso foi facilitado pela Lei de Segurança Digital (DSA) aprovada em 2018, segundo a qual a “propaganda negativa” pode levar a uma pena de prisão de 14 anos, informam jornalistas locais.
A DSA esteve no centro da polêmica morte sob custódia policial de um escritor e comentarista de Bangladesh, no início deste ano.
Mushtaq Ahmed, detido pela DSA em maio do ano passado por supostamente ter postado no Facebook críticas à resposta do governo à COVID-19, morreu sob custódia policial em fevereiro. Uma investigação oficial concluiu que a morte ocorreu por causas naturais. Mas, outras pessoas que foram presas com ele na época alegaram que houve tortura, e alguns suspeitam que os ferimentos sofridos pelo escritor durante o encarceramento foram os responsáveis pelo óbito.
Poucos jornalistas locais se dispuseram a falar sobre suas experiências de trabalho no país, mas um deles, que aceitou falar em anonimato, assegurou que a prisão e a morte de Ahmed tiveram um efeito profundo na mídia.
“Depois do que aconteceu com Mushtaq Ahmed, muitos jornalistas ficaram imediatamente menos dispostos a desafiar qualquer coisa que o governo dissesse sobre a pandemia do coronavírus”, afirmou o jornalista à IPS.
“A DSA está sendo usada para assediar jornalistas – muitos foram presos por causa da lei após publicarem notícias criticando autoridades.
“Fazer reportagens com a DSA em vigor é o principal desafio para jornalistas em Bangladesh no momento. Os meios de comunicação utilizam a autocensura para evitar o assédio realizado com base na DSA. Se alguém souber de uma única notícia negativa sobre eles, pode usar a DSA para mover uma ação judicial contra o repórter e o editor”, acrescentou o jornalista.
Mas, embora a pandemia da COVID-19 tenha, sem dúvida, permitido aos governos reprimir a mídia crítica, não há garantia de que a situação melhore quando a pandemia terminar, segundo os defensores da liberdade de imprensa.
Scott Griffen, Diretor Adjunto do IPI, disse à IPS: “Quem decidirá quando a pandemia acaba? Os governos, para os quais a pandemia é uma ferramenta útil para suprimir as liberdades civis, podem sofrer a tentação de manter um estado de emergência de alguma forma, mesmo após o fim da ameaça imediata à saúde”.
Ele acrescentou que também há temores de que as medidas introduzidas durante a pandemia possam não ser rescindidas.
“As consequências dos ataques de 11 de setembro nos Estados Unidos trouxeram novas medidas antiterrorismo, incluindo retrocessos sem precedentes das liberdades civis. Países em todo o mundo têm usado leis antiterrorismo para reprimir o discurso crítico. Da mesma forma, tememos que as leis emergenciais introduzidas durante a pandemia do coronavírus possam se tornar parte permanente da estrutura legal em alguns países, assim como a cultura de rastreamento e vigilância de cidadãos, que dificilmente será revertida. Isso tem implicações profundas para a privacidade dos jornalistas e a capacidade de proteger suas fontes”, concluiu ele.
No entanto, apesar do panorama desolador para a liberdade de imprensa em muitos países à medida que a pandemia continua, há esperança de que a mídia independente continue, não importa o quão severamente ela possa ser restringida.
“Os jornalistas ainda produzirão reportagens independentes, mesmo nas circunstâncias mais hostis. Essa é a missão deles. É possível ter jornalismo independente sem democracia. Mas não é possível ter democracia sem jornalismo independente,” previu Mahoney.
O artigo original pode ser encontrado aqui no site do nosso parceiro
Traduzido do inglês para o português por Gardenia G. / Revisado por Felipe Balduino