Por Flavia Estevan

Esta série tem como objetivo contar as histórias e trajetórias de mulheres que desempenham um papel de cuidado, proteção e saúde nas comunidades em que vivem. Algumas delas tiveram acesso à educação escolar e outras aprenderam com o conhecimento transmitido ao longo de gerações. Elas não pretendem substituir sistemas de saúde formais; pelo contrário, complementam e assistem onde os sistemas de saúde não chegam ou são insuficientes, colocando o bem-estar coletivo como o valor principal.

Hoje, vamos conhecer a história de Dona Madalena que vive no sertão do Ubatumirim- entre a serra e o mar, quase na fronteira do litoral de São Paulo e do Rio de Janeiro.

Seu olhar amplo e holístico, sem preconceitos e com a cabeça e o coração abertos, faz dela um exemplo de que a saúde é feita por muitas variáveis; culturais, sociais, individuais, ademais de biológica e quando os sistemas de saúde integram esses olhares e saberes, todas e todos ganhamos em qualidade e humanidade. 

Dona Madalena é uma mulher que começou na enfermagem porque queria ajudar as pessoas na saúde em 1969, naquela época tinha apenas 14 anos. A esposa do prefeito da época lhe sugeriu tentar uma vaga na Santa Casa de Ubatuba que havia aberto processo seletivo. Ela foi, fez a prova e passou. Começou trabalhando na Santa Casa de dia, enquanto fazia o Colegial a noite. 

Depois de 4 anos trabalhando na Santa Casa foi trabalhar em uma farmácia, dava injeções, fazia as inalações, curativos, medição de pressão, diz que não sabe a razão, mas adora ler bula de remédio. Depois foi para a Saúde Pública e foi a primeira agente comunitária do Município. Casou-se e se mudou do Centro de Ubatuba para o Sertão do Ubatumirim,  uma pequena comunidade no pé da serra, onde vive até hoje.

Essa era uma época pré Sistema Único de Saúde (Sus), nas comunidades mais afastadas não haviam serviços de saúde e muitas vezes as pessoas não conseguiam chegar à cidade. Isso fazia com que ela tivesse que muitas vezes se deslocar com ajuda do marido, Seu Jorge, que a levava para atender quem precisava. 

Trabalhou como voluntária na sua própria casa por 6 anos, com a ajuda de um empresário de São Paulo, que doava os materiais para que ela pudesse atender os vizinhos, prestando todos os cuidados em saúde para a comunidade. De vez em quando um médico vinha atender a comunidade na sua casa, ela conta que a cama dela ficava cheia de crianças aguardando as consultas. 

Dona Madelena e Sr Jorge

Atendeu mais de 20 partos em casa, muitos deles sem luz elétrica, o marido posicionava o farol do Fusca que tinham na época, para iluminar dentro da casa.  Assim como essa, ela tem outras mil histórias e é um exemplo vivo de promover e acompanhar a estruturação do Sistema Único de Saúde no Brasil, mas sempre complementando e atendendo, ou porque não havia, ou porque a cobertura do SUS era pequena.

Em 1987, seu marido sugeriu dar uma parte do terreno deles para construir o posto de saúde. O próprio Sr Jorge, que é pedreiro, juntamente com um pequeno grupo, construíram o posto que até hoje atende a comunidade. Os moradores pediram que Dona Madalena fosse a enfermeira do posto, e assim foi. Ela trabalhou no posto de saúde por 24 anos até que a obrigaram a se aposentar por tempo de serviço. No dia do seu aniversário ela chorou, não queria parar, achou que iria morrer. Mas ela saiu do posto e a comunidade a seguiu.  Ela voltou a ter um pequeno espaço em sua casa, onde recebe as pessoas que usam o sistema de saúde público, mas depois passam com ela para pedir opinião sobre diagnósticos e prescrições, entender melhor o uso da medicação, pedir orientações, tirar dúvidas, etc. Alí, ninguém toma nada que o médico tenha dado, sem perguntar a opinião da Dona Madalena.

Hoje em dia não atende mais partos, ela explica que “Quando as coisas evoluíram, chegou ônibus, luz elétrica, telefone e já dava para acionar o SAMU (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência), eu deixei de atender as emergências. Atualmente, ela socorre emergências e muitas vezes acompanha as pessoas até o hospital, mas sua principal atividade acontece na sua casa. Ela dá orientações de pré parto, ensina como as mulheres devem identificar os sinais de de trabalho de parto, conversa com, tira dúvidas e orienta. Também faz visitas domiciliares a pessoas acamadas, organiza doação de roupas e alimentos. Ela facilita a comunicação das pessoas com profissionais de saúde, ajuda no entendimento das questões que a comunidade atravessa.

Ela conta: -”Aqui tem de tudo, para cada situação eu sei como lidar, mudo de personagem. Converso com adolescentes, vou jogando assuntos. Já ajudei a resolver problemas conjugais e consigo ficar amiga da esposa, do marido e da amante (risos) e eles acabam se entendendo”.

Sobre carreira política, ela diz que já saiu duas vezes a concorrer às eleições para vereadora, na última vez ficou como suplente, mas não sente que esse seja o seu caminho. Um prefeito de Ubatuba, uma vez, levou-a para o gabinete para ser responsável pela função de “assuntos comunitários”, ela ficou 15 dias e foi embora. Falou -”Vou voltar pro meu mato, que lá eu rendo muito mais”. 

Entrada da casa de Dona Madalena

Pergunto o que a move?

“Satisfação. Estou na minha casa lavando louça, chega uma gestante, uma pessoa com bronquite, outra com pressão alta. Eu conheço as pessoas, eu conheço o histórico delas. 

Teve um rapaz que em uma briga levou um golpe na cabeça com um vidro e ele teve uma hemorragia interna. Eu fui atrás dele, depois fui até a estrada parar algum carro para nos levar para o hospital, porque eu sabia que o agressor, estava escondido esperando meu carro passar com ele dentro para seguir com as agressões. Quem não conhece o contexto, não consegue trabalhar aqui”.

Uma outra vez, ela foi visitar um rapaz que tem problemas mentais e que estava com a pressão arterial muito alta, ele estava muito nervoso e alterado. “-Falei que precisávamos ir até o hospital e começamos a andar até a estrada. Ele apertava a minha mão e começou a dizer que iria me matar, eu disse: -Deixa pra me matar depois, não me mata agora não. Passamos pelo rio e eu falei: -Olha que rio gostoso! Ele mergulhou (risos), depois entramos na ambulância e ele foi todo molhado, mas com a cabeça fria para a cidade”. 

É possível passar dias ao lado de Dona Madalena ouvindo suas histórias. Ela mostra o registro que faz de cada atendimento realizado e conta que além de pessoas, atende também animais, tanto pelo bem estar deles quanto por entender que eles também podem ser fontes de doenças para as famílias. 

Todos os dias, de domingo a domingo ela está disponível para quem chegar em sua casa pedindo ajuda. No dia da entrevista, um domingo, ela tinha ido para a praia fazer sete visitas domiciliares aos moradores caiçaras, que vão desde problemas com unhas, curativos, problemas digestivos, hipertensos e  diabéticos. Ela conta que a disponibilidade para os demais, atender as pessoas e ajudá-las em suas dificuldades é o que a mantém feliz e saudável, que essa é sua vida e é uma vida feliz.

http://www.rehunosalud.org