CRÔNICA
Por Marco Dacosta
“Infeliz é o espírito ansioso pelo futuro”
Seneca
Havia um tempo – não muito longe dos dias que vivemos, quando escrever era uma tarefa artesanal. Desenhávamos letras nos cadernos de caligrafia, escrevíamos postais e cartas aos amigos e parentes, cartões de Natal e desejos de ano novo. Para alguns de nós esse tempo é só lembrança – para outros desafia nossa capacidade de superar o passado – um dia uma amiga me pediu para que a escrevesse, por carta. Recebi o envelope selado, abri e achei lindo mas não consegui responder. Sou um nostálgico, amante de tecnologia vintage, vinil, rádios e máquinas de escrever – mas nada disso pode voltar. O mundo era muito mais difícil sem celular e internet, por mais que minha geração tente resgatar esses hábitos. Seria como voltar ao amolador de faca e ao fogão a lenha – a lentidão nos deixaria irritados. Fomos todos contaminados pelas comodidades e pela rapidez dos novos tempos.
Ainda lembro com ternura da batida das teclas, marcando letra por letra em um papel. Tenho duas máquinas incríveis, espalhadas pelo mundo. Uma, mais antiga, em algum depósito da Flórida e outra nas montanhas da serra do Rio de Janeiro. Inesquecível minha visita a uma loja em Oakland na Califórnia, onde me apaixonei pelas dezenas que são lá reformadas e vendidas. Quero vê-las na minha estante, como um troféu. Somente assim.
Encontrei Hoje umas anotações em papel. Há muito não escrevo – digito. Há muito não faço ponta no lápis – rabisco. Estou perdendo minha habilidade de escrever ao papel, deslizar a esferográfica azul entre duas linhas. As vezes pego rabiscos antigos e faço viagens no tempo. Olho para o teto, tentando imaginar cenas do passado – me transportei para um antigo apartamento em uma parte do Brooklyn bastante antiga e preservada, me sinto em algum lugar de Londres – ou mesmo em uma Nova York de outra época. Minhas janelas laterais estão de frente para um prédio também como o meu, antigo. Vejo através do vidro e cortinas as marcas do tempo. Parece uma fábrica, de tijolos pesados, entradas em arco. Nada é moderno, nem no meu, nem no deles. As janelas, detalhes, piso, acabamentos, tudo como era ou deveria ser nos anos 20 – quando foram erguidas as primeiras casas da rua. Bristol Street – sim esse era o nome nos envelopes que recebia – com certeza inspirado na cidade britânica de mesmo nome, industrial, decadente e vazia.
Sigo na lembrança : Deitado, olhando para as janelas e lá fora uma torre de igreja, vejo o mesmo que os que aqui viveram durante décadas. Várias gerações naquele quarto viram lá fora a mesma paisagem, não há nenhuma casa ou prédio ao redor que pareça construção após a segunda guerra. Não são casas como as de Brooklyn Heights, que foram da elite da época. Escritores como Capote viveram nelas. A Bristol street é uma rua que corta uma região de classe média baixa, trabalhadores, operários. Quem sabe por isso os prédios ficaram intactos e sobreviveram a especulação imobiliária que avança ao norte e ao sul do Brooklyn. Nos anos 60 e 70 vários conjuntos habitacionais destinados aos mais pobres e negros foram ocupando os terrenos abandonados das fábricas desativadas após a segunda guerra. Os anos seguintes seriam de muita violência, revoltas, uma área quase que similar ao sul do Bronx, tomada por gangues e com prédios decadentes. Essa situação impediu novamente a gentrificação.
Olho ao meu redor, as paredes, os detalhes do rodapé. As centenas de famílias de imigrantes, italianos e poloneses – primeiros a ocupar a rua foram deixando a região aos poucos. A rua e o bairro ficaram destinados aos negros que chegavam do sul. Muitos das ilhas do caribe, Jamaica e índias ocidentais. Os tacos decorados formam estrelas – já não se faz mais piso assim – comenta o senhorio. Na entrada do prédio um chão de pastilhas, formam desenhos geométricos. A recente reforma não mudou nada, nem cor, nem textura. Por economia ou pressa em alugar, os três apartamentos seguem com a mesma estrutura e desenho dos anos 20. E tudo isso me faz viajar no tempo.
Fico imaginando, da minha cama, uma máquina de escrever. Quantos toques essas paredes já escutaram? gemidos dos casais, quantas crianças nasceram? Quantos amores começaram e terminaram nesses cômodos? A carta que veio do navio, da guerra, chegou aqui pela velha caixa postal. A notícia da perda do filho, as lágrimas. A história passou por aqui e eu sensível a ela, reescrevendo outras páginas, sigo enchendo a casa de amor e ternura. Hoje são os toques do computador, o barulho da garrafa de coca cola, o gás. A TV, a internet, a estante que fiz. Restou do passado o som do vinil, o barulho do aquecedor, da água fervendo correndo pela tubulação para aquecer nossas vidas. Passado e presente, sons, cores, odores.
Viajar no tempo é possível. Eu fui lá nos anos 20, como um caleidoscópio os anos foram passando e transformando as coisas, amores, partos, mortes, partidas, chegadas. Acelerei mais ainda, pela janela vi os hippies, as gangues brigando, avancei mais – me vi chegar cheio de malas, sair do Uber, subir as escadas, abri a porta. Voltei.
Suspiro aliviado. Acabou a guerra quente e a fria, acabaram os ataques as torres gêmeas, terminaram as pandemias, a máscara vai para um museu em breve e ou será substituída por outras, novos vírus sempre estarão a caminho. Volto da viagem e fico feliz por ter penicilina, por ter vacina, por ter antibióticos e sons de robôs. Pergunto a Alexia qual a temperatura e como será o amanhã. Dia claro, começo de outono, ela responde.
Que fantástico viver o presente.