Há sete dias nos despedimos subitamente de Alexandre Cartes, um amigo querido, uma referência e um peculiar difusor da obra de Silo com irreverente sotaque carioca. Alexandre andava realizando, neste biênio pandêmico, diálogos ecumênicos com lideranças de diversas religiões predominantes no Brasil, as de matriz africana como a Umbanda e o Candomblé; as de matriz europeia como setores da Igreja Católica, do Judaísmo e dos Cultos Neopentecostais e as de matriz asiática com representantes budistas. O intuito é sempre aquele contido em um pequeno livrinho intitulado A Mensagem de Silo: a convergência na diversidade, o diálogo fraterno, a resolução de conflitos e uma utopia comum de uma nação humana universal. Encontrar o humano no outro. Além disto, do direito a crer ou não crer em Deus e de se perguntar em seu fórum mais íntimo: há sentido na vida se tudo termina com a morte?
“Creio em Deus”. “Não, não acredito em Deus”. “Esta vida é uma só, morreu acabou”. “Depois de morrer eu vou para um terreno no céu, que comprei com dízimo”. “Eu virarei purpurina, beija-flor ou até mesmo um arco íris”. “A Natureza é Deus”. “A Natureza é e não é Deus”. “O vazio se eternizará”. “A Natureza é tudo o que há e é uma Deusa negra”. “Os orixás me guiarão nesta passagem final”. “Eu ressoarei pelo infinito como uma gargalhada”.
Calma leitor! Escrevi frases aparentemente contraditórias de propósito. São pensamentos que tive em diferentes momentos da vida. São posicionamentos e profundidades frente ao problema da finitude.
A vida não tem sentido se tudo termina com a morte. Mas é verdade que tudo termina com a morte?
Silo nos lança esta pergunta em seu texto O olhar interior. O que parece é que o autor se interessa não por encontrar uma resposta definitiva, mas a pluralidade de respostas que os leitores poderão dar. Não, o interesse dele não é literário. Para Silo o motor da história é a luta contra a morte e cada resposta à pergunta dará uma direção diferente à vida.
Marx, no século dezenove afirmou que o motor da história é a luta de classes. Assim, inaugurou um pensamento que até hoje se apresenta como uma das mais afiadas ferramentas críticas ao sistema. Silo, como jovem rapaz latino-americano dos anos sessenta (argentino de Mendoza, nascido em 1938) trouxe a coisa para um lado existencial, influenciado tanto pelas buscas espirituais como pelos movimentos sociais de seu tempo. O pessoal e o social juntos. Em um ato em Madrid, em 1980, Silo se pergunta:
Há muito tempo, a vida humana floresceu neste planeta. Então, com o passar dos milênios, as populações se desenvolveram separadamente. E havia um tempo para nascer, um tempo para desfrutar, um tempo para sofrer e um tempo para morrer. Indivíduos e povos, construindo-se, se sucederam, até que finalmente herdaram a Terra, dominaram as águas do mar, voaram mais rápido que o vento, atravessaram as montanhas, e com vozes de tormenta e luz do sol mostraram seu poder. Então eles viram ao longe seu planeta, redondo, verde-azul, amavelmente protetor, velado por suas nuvens.
O que mobilizou tudo isso? Que motor colocou a humanidade na história, se não a rebelião contra a morte? Pois a morte como uma sombra a acompanha desde antigamente e quis conquistar seu coração.
Em seu texto Sobre o sentido da vida, Silo localiza cinco posturas frente ao tema da morte: estar convencido que não há vida após a morte; suspeitar intelectualmente que possa haver uma transcendência; acreditar por hábito, ensinamento ou tradição que há vida além desta; desejar ter uma fé em que há transcendência, mas não a experimentar; estar convicto – não por ensinamento ou doutrina – mas por experiência de que a vida segue após a morte do corpo. Estas posturas, segundo o autor, podem mudar ao longo da vida e contar com uma escala de profundidade. Por exemplo, alguém que diz ter uma fé inabalável, perde afetos ou entes queridos e logo desaba em desespero. Esta fé se encontrava na superfície. Outro exemplo, o de alguém que se diz bastante cético em relação à imortalidade, mas tem um ataque de pânico ao passar em frente a um cemitério; uma pessoa que não acredita em nada de outro mundo, mas nutre fé na vida e isto lhe dá força inabalável nos desafios mais duros. Diferentes profundidades daquilo em que se acredita. O interessante do ponto de vista de Silo é precisamente esta mobilidade de um estado a outro – e de profundidade. As crenças e a fé, ou o questionamento crítico, são dados pela cultura e pelo momento histórico em que nascemos e formamos – Silo chama o conjunto destes elementos de “paisagem humana”. Entretanto estas crenças – ou sua profundidade – podem mudar do dia para a noite, ou com o tempo. Silo destaca a importância de questionar-se sobre o sentido da vida e da liberdade de crer ou não na imortalidade.
Esta visão siloísta da vida guiou o nosso amigo Alexandre Cartes em diversos deslocamentos pelo Brasil e pelo mundo. Recentemente organizou encontros ecumênicos, interreligiosos no intuito de promover o diálogo e a convergência entre o diverso. O foco dele sempre esteve nos pontos em comum e no diálogo de reconciliação entre as diferentes visões de mundo propostas pelas diferentes expressões espirituais ou religiosas. Uma atividade interessante e urgente – diga-se de passagem – sobretudo neste momento de desentendimento social que o país atravessa.
Alexandre foi um cara intrépido e apaixonado pela alteridade, que se lançou de corpo e alma naquilo em que acreditou, seja uma ideia, um amor, um lugar ou uma onda. Sim, ele foi um surfista zona norte, segundo seus amigos e amigas de juventude no Irajá, Rio de Janeiro. Distância da praia ou precariedade nunca foram obstáculo para ele pegar sua onda. Com o passar do tempo a onda era outra: ele e seus amigos de bairro foram desvendar o misterioso argentino chamado Silo, em tempos pré-internet. E estes estão aí até hoje em frentes como a agência de notícias Pressenza, o Mundo Sem Guerras ou na construção de parques de retiro e meditação. Foi um cara de olhar afetuoso e direto. Não por acaso em tempos recentes estava metido naquilo em que acreditava: em olhar fundo nos olhos dos mais diversos seres humanos – das origens mais diversas, das humildes às mais abastadas, umbandista, católico, negro, originário, europeu ou asiático, budista ou moçambicano, carioca ou pernambucano e dizer:
“Não importa em que bando te meteram, o que importa é que não escolheste nenhum bando”
Alexandre Cartes deixa saudades. Um homem que soube viver de um jeito que parecia dar o recado de que nada nesta vida é permanente e que é preciso ter a coragem de deixar-se ir. Como o pássaro que pousou pela primeira vez dentro de sua casa, um dia após a sua partida
Todos esses que aí estão
Atravancando meu caminho,
Eles passarão…
Eu passarinho!
_ Mario Quintana, Poeminho do Contra
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Conheça a Mensagem de Silo ou mais sobre o Alexandre nestes links externos:
Alexandre Cartes (LIVE) – Fórum Diversidade Religiosa- Paraíba: https://www.facebook.com/diversidadereligiosapb/videos/407100597298383
A mensagem de Silo: http://www.silo.net/system/documents/140/original/A_Mensagem_de_Silo.pdf
https://silosmessage.net/sobre-silo/?lang=pt-pt
Cartas à Alexandre Cartes, vovô-da-roça e astronauta. Por Rogério Weber (em espanhol): https://staging1.pressenza.com/es/2021/11/carta-a-alexandre-abuelo-de-pueblo-y-astronauta/?fbclid=IwAR2-NdBDbn_lZrUCb_EYyTW48ji6Ut9OSzCiChvbBYOP0Ba1RDdpx0nl9Mk