Foi assim que o antropólogo Fernando Ortiz descreveu os seres humanos que já habitavam o arquipélago muito antes da chegada dos europeus.
“Não eram índios, nem sequer constituíam um só grupo homogêneo, e sim vários, separados por histórias, linguagens, culturas e economias distintas que já os dividiam socialmente em dominações e classes sobrepostas.”
O almirante genovês desembarcou em terras cubanas por Cayo Bariay, acidente geográfico pertencente hoje à província de Holguín, onde viveram todos os grupos culturais que existiram no território cubano na etapa pré-colombiana.
Mas quem eram? Como viviam? Qual era a sua cultura? Como estavam organizados? Foram totalmente exterminados? Essas são algumas das perguntas que têm guiado os pesquisadores há décadas na ânsia de conhecer os verdadeiros descobridores de Cuba.
Primeiros habitantes
O arqueólogo Juan Guarch explicou à Escáner que foram encontradas evidências da presença das diferentes classificações destes grupos em Holguín, em regiões do município de Mayarí, onde há vestígios dos chamados caçadores, os mais antigos.
“Pesquisas demonstraram, além disso, a passagem dos pescadores-coletores, ou siboneyes, em outras áreas. Eles viviam da caça e, sobretudo, da pesca. Também indicaram a passagem dos protoagrícolas, os que compartilhavam atividades econômicas similares aos anteriores e trabalhavam com cerâmica, de forma tosca”, argumentou.
Os agricultores-ceramistas eram de uma cultura superior. Tal definição agrupa os taínos, os quais tomaram posse de toda a região oriental de Cuba e desenvolveram a agricultura, de forma bem organizada. Dominavam a olaria e o trabalho com pedras, entre elas a serpentina.
Foram encontrados objetos dissimilares pertencentes a eles que fornecem pistas de como foi a sua vida e como ela mudou com a colonização espanhola, que em muito pouco tempo reduziu e massacrou a população nativa cubana.
Estudos contidos no livro “Indios en Holguín” dão uma ideia da rápida desarticulação desta estrutura social. No momento da conquista, segundo o demógrafo e historiador Juan Pérez de la Riva, a população indígena ultrapassava os 110 mil habitantes.
Esse número foi mudando a partir das descobertas de novos lugares de assentamento; textos de Bartolomé de las Casas e outros cronistas deixaram registrados os motivos que levaram à sua drástica redução.
Para o historiador cubano Hernel Pérez Concepción, “a colonização da ilha pelas tropas de Diego Velázquez destruiu, em pouco tempo, tudo que havia sido construído pelo aborígene, tanto em seu aspecto espiritual quanto material, apoiando-se no emprego da força bruta para se impor”.
“O choque dessas duas culturas (espanhola-americana) fez com que a menos desenvolvida, neste caso, a aborígene, sofresse um trauma desarticulador, que acabou por ser a causa principal da violenta diminuição do indígena americano”.
Isso, unido a suicídios, epidemias, aumento da mortalidade infantil, massacres, homicídios, fome e mestiçagem, incidiram no declínio daqueles aventureiros – como disse Fernando Ortiz – que em rústicas canoas, sem caravelas, bússolas ou astrolábios, chegaram a este país séculos antes.
Os índios estão extintos em Cuba?
O vice-presidente da Rede do Historiador do Conservador das Cidades Patrimoniais de Cuba, Alejandro Hartmann, em entrevista exclusiva com Escáner, destacou que diversas pesquisas antropológicas realizadas durante décadas demonstraram a existência de 22 comunidades de descendentes em todas as províncias orientais, de Baracoa a Camagüey.
“Nos estudos de campo e nos arquivos da província, de paróquias e arcebispados, comprovamos que, apesar de o censo espanhol de 1777 ter eliminado o termo índio, os padres continuaram registrando essa denominação nos batismos, nascimentos, mortes e matrimônios.
“A partir dessas informações e da pesquisa nas diferentes comunidades e bairros apontados, realizados uma contagem de famílias que, até o momento, identifica mais de 12 mil Rojas, Ramírez, Romero e Rivera.
Dessas famílias procede o cacique Francisco Rojas Ramírez, da comunidade conhecida como La Ranchería, pertencente ao Conselho Popular La Caridad de los Indios, no município guantanamero de Manuel Tames.
O assentamento tem em torno de 11 casas e 20 pessoas e é um dos já mencionados lugares escondidos nas montanhas orientais, onde seus antepassados conseguiram sobreviver.
Hartmann, que é também historiador da cidade de Baracoa, ressaltou o trabalho científico realizado por um grupo multidisciplinar integrado pela doutora Beatriz Marcheco, diretora do Instituto de Genética de Cuba, pelo sociólogo Enrique Gómez e pelos fotógrafos Héctor Garrido e Julio Larramendi.
Eles assumiram a tarefa de demonstrar como a presença aborígene ainda está viva. Como publicou Beatriz Marcheco, “os cubanos atuais conservam uma alta proporção de genes nativos americanos herdados pelas mães e que constituem, em média, mais de um terço dos genes ancestrais transmitidos pelas linhagens maternas”.
Estudos genéticos realizados pela cientista revelam que 34,5% da população geral herdou o DNA mitocondrial nativo americano. Os níveis mais altos estão nas províncias de Holguín (59 por cento) e Las Tunas (58).
Uma marca cultural
O que herdamos dos nossos ancestrais primitivos? Além dessa porção mitocondrial no nosso DNA, hoje permanece uma identidade na vida cotidiana e no imaginário coletivo que, às vezes, parece imperceptível.
Alejandro Hartmann enumera a sabedoria agrícola do conuco (agricultura de subsistência); o plantio orientado pela Lua; o casabe (beiju, prato feito com farinha de tapioca) e do milho como culinária herdada dos antepassados; a cura do rastro, um “apalpamento”, prática muito popular que passou de geração em geração para curar o mal-estar no estômago.
“O bohío (oca) é outra evidência incontestável. Essa construção vernácula está presente em muitas áreas rurais do nosso país, ainda que a Revolução tenha edificado centenas de escolas, salas de vídeo, casas de cultura, consultórios de médico da família e outras construções”.
Além disso, inumeráveis indo-americanismos estão presentes e fazem parte do vocabulário cotidiano. “Baracoa, o primeiro povoado do nosso país, fundado por Diego Velázquez em 15 de agosto de 1511, conserva o seu gentilício de origem, Aruaco, que significa ‘existência de mar’”.
Outros vocábulos latentes no território nacional são: Toa, Duaba, Moa, Bariay, Jiguaní, Bayamo, Habana, Camagüey (topônimos) , guanábana (graviola), mamey (tipo de árvore), guayaba (goiaba), aguacate (abacate), ají (pimenta), anón, caguairán, mangle (mangue), caoba (mogno), ceiba (ceiba)…
Entre os zoônimos se destacam jutía (um tipo de roedor) , jicotea, caguama e carey (tipos de tartaruga), manatí (manati ou peixe-boi), majá (um tipo de cobra) , bibijagua (um tipo de formiga), iguana, macabí (tipo de peixe), colibri (colibri ou beija-flor) e tocororo (tipo de pássaro), enquanto que de na cultura material estão barbacoa (churrasco), caney, bohío (oca), bajareque, casabe (beiju), ajiaco (um tipo de sopa), conuco, güiro (instrumento de percursão), jabá (tipo de cesto), canoa, guamo (instrumento de sopro), chocolate, hamaca (rede de deitar) e muitos mais.
Do ponto de vista arqueológico, em Holguín – um dos locais mais importantes do país nesse aspecto – sobressaem lugares como Chorro de Maíta, em Banes, cemitério aborígene de grande relevância na área do Caribe.
Também o Museu Indo-cubano Baní, que possui registros riquíssimos das antigas culturas aborígenes dessa região.
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Em Cuba, caney é o nome com o qual é conhecida uma das formas mais utilizadas pelos aborígenes na construção de suas casas simples, caracterizadas por suas paredes circulares e o teto como um cone, todo em madeira.
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Bahareque, ou bajareque, é a denominação de um sistema de construção de casas de varas ou bastões entrelaçados e lama.
O Herói Nacional de Cuba, José Martí, em um dos seus textos, escreveu: “enquanto não se faça o índio andar, não começará a América a andar bem”; daí essa dívida e imperiosa urgência de se preservar e manter com orgulho uma herança que corre por nossas veias e vive no cotidiano.
arb/mlp
*Este trabalho contou com a colaboração da PLTV, da editora-chefe Luisa María González, da editora Amelia Roque, do chefe da Redación Centro-Suramérica Alain Valdés e do webmaster Diego Hernández.
Traduzido do espanhol por Beatrice Tuxen / Revisado por Tatiana Elizabeth