CRÔNICA
Por Guilherme Maia
Tenho – lágrimas – quarenta e dois anos e passei minha infância e adolescência na Zona Sul carioca, tendo momentos de Tijuca onde residiam meus avós paternos e minha avó materna. Esse balanço Leblon-Tijuca moldou uma parte de meus pensamentos com projeções, acho, que continuarão no meu jeito de ser até o último suspiro.
Escrevo essas mal-traçadas-linhas sem um assunto preordenado e a exposição que estou fazendo sobre meus tempos-idos já me inunda de imagens e referências geográfico-espirituais. Daí, então, vamos falar sobre alguma coisa aqui: o despojamento da Zona Sul de um lado e um recato tijucano meio Nelson Rodrigues da vida, de outro.
Hoje, tais características já estão volatilizadas, porque, se de um lado, a Garota de Ipanema deu espaço para o nazi fascismo pró-segregação e armamentista; por parte da Tijuca, os ares da boa boemia cheiram cada vez mais a Noel Rosa e Aldir Blanc suplantando, pois, aquele excessivo recato.
Com tanta digressão Ipanema-Tijuca surge aqui na minha mente aquele velho movimento que surgiu desses bairros e que não era só música e canção: a Bossa Nova.
Era uma maneira de ser, uma claridade iluminista, um frescor de viver – tudo contrário ao predomínio de um general Amaury Kruel, por exemplo, que, por sua vez, infelizmente, tomou os espaços simbólicos da beleza na contemporaneidade do Rio. Falo dessa figura nefasta como símbolo e não como o degenerado que foi em vida por um simples fato: a formação do esquadrão da Morte veio no mesmo espaço-tempo em que João Gilberto desenvolveu a nova forma de tocar violão.
Contradições sempre ditaram o Brasil e especialmente o Rio de Janeiro, mas o que vemos com a atual cultivo difusão exagerada do medo na cidade é como um monotom: o medo e sua contrafação – a persecução policialesca e o fanatismo religioso – estão no lugar do Samba de uma Nota Só (num outro contexto ao da simbiose letra-música de Tom Jobim e Newton Mendonça).
Agora eu consigo traçar uma linha-mestra nesse texto!
A Bossa Nova trouxe uma ponte de comunhão entre a praia e a favela e essa ponte, em sua configuração mais crítica, vinha de outro símbolo carioca: Nara Leão.
Ela mesma, garota Zona Sul que esteve lado a lado com João do Vale e Zé Keti, respectivamente o nordestino e o favelado (se é “comunidade”, como se chama o morador dela? “Comunitário”?).
Enfim, era uma artista politizada e fraternal aos que sofrem os horrores da concentração de renda senegalesa brasileira, as vítimas do autoritarismo e o estigma da exclusão social. Era uma militante de esquerda sobrepesada por um sorriso carismático e marcante, um frescor mesclado à luta dura contra a subserviência ao terror.
Nos dias de hoje, essa militância passou a ser mais frontal do que na época de Nara Leão e, por conta disso, a militância partidária avant la lettre é, além das questões do velho abismo social brasileiro, também lutar por dignidades de escolhas individuais. Atualmente no país, ainda não se consolidou a esfera de liberdade individual liberal do século XVII mesmo.
Assim, na vasta paleta de cores partidárias brasileiras, nada mais neobossa-nova do que um sol sorridente, por que toma partido pela preocupação econômico-social, mas também da luta de liberdades individuais frente a um Estado com aspirações totalitárias e uma sociedade civil embalsamada por umas imposturas que legitimam a ingerência na esfera privada do cidadão.
Permeando o enleio dessas eternas contradições da salvelinda pátria está a bandeira solar do socialismo conjugado com a liberdade. Alguns compay sucumbiram ao sistema bruto de corrupção desenfreada que emana do próprio fazer político, mas, colhidos os cacos da luta, um sorriso ainda se sai bem senão intacto do mal de nossa sociedade. Planou por sobre a tentação e o seu sol continua sorrindo.
Cortando para outro ponto desse texto: como dizia acima, o carioca’s way ficou entranhado em mim, como o falar meio chiado e o “é m/ê/rmu’, um saudosismo indevassável de um tempo não vivido, como se o Rio de janeiro em sua belle époque fosse a própria Paris, como se a Galeria Cruzeiro antiga fosse o Café de Flore, – bom, para mim é, sim!
Então, houve uma ruptura brusca na minha vida, a “falência generalizada dos órgãos financeiros da família”, o que forçou meu pai a trazer-nos todos para uma cidade serrana chamada Teresópolis e por aqui fiquei casando e tendo filhos.
Tamanha beleza nas serras, um lugar de ares bucólicos e paisagens de enlevo. Chama a atenção sua insistente Mata Atlântica que reveste seu solo e o recorte preciso das montanhas que marcam o perfil acolhedor dessa cidade esplendorosa marcada por seus montes e vales.
Por outro lado, essa cidade sui generis me espanta até hoje por ser um centro de reacionarismo entranhado e inexpugnável. Soube que em plenos 80 e 90 a cidade foi governada por um capo de Nova Iguaçu, que além de ser envolvido por contravenções e crimes, era um “messias” bem ao gosto do sebastianismo ibérico. Além disso, tivemos aqui vereadores que serviram ao DOI-CODI eleitos e reeleitos em plena abertura política. O número excessivo de igrejas “politizadas” e uma segurança pública do tipo “está tudo calmo…. E será por quê? ”, também salta aos olhos.
Acontece que no meio desse caldo reaça e fascistóide, – até violento mesmo: se você se dispor a discutir a necessidade de aumento do salário mínimo com uma pessoa na Praça da Santa Teresa, por exemplo, pode sair com fraturas e escoriações, – surgiu um grupo novo em Teresópolis; corajosos e corajosas não se intimidam e se propõem a desfazer o nó mental que infligiram ao povão da cidade.
Com essa chegada, foi-se tomando espaço na medida do possível e da perseverança de todos os envolvidos. Agora já tem assento em programas da TV local, como a de um cara que entende e prega que o MST é um grupo terrorista financiado pelo Narcos…
Enfim, a ponte que eu precisava: Teresópolis já pode respirar emergindo de uma opressão sufocante, já há espaço de debate e enfrentamento de uma ideologia de submissão masoquista que iludia e dominava o povão. Agora já tremula o sol sorridente e já se pode esperar de que um dia não teremos mais políticos contraventores a mando de Nova Iguaçu, empresários sedentos por grana mole, médicos que, por coincidência, resolvem exercer suas funções SUS sempre à beira de uma eleição e outros simplesmente loucos mesmo.
A alternativa foi dada e esta consolida, nesse momento, uma média de novecentos e oitenta votos, os quais irão aumentar cada vez mais na medida inversa em que as políticas de curral eleitoral forem demonstrando sua ineficácia frente às necessidades básicas da população teresopolitana.
O sol sorridente da proposta de igualdade e liberdade irradiará em nossos corações e baterá forte uma esperança de reviravolta numa cidade dominada pelo medo. Surge disso tudo um NEO-ESPÍRITO CRÍTICO E LIVRE e uma NEOBOSSA NOVA. Já nasce neo, pois não teve o tempo de formar uma “nova” e o tempo passou tão longo que já teve de nascer como NEONOVA para fazer frente ao atraso de séculos.
Não temer o avanço é como música na política e a simbiose percussão-melodia nas cordas do violão de João Gilberto é como uma ruptura epistemológica com o passado, com a mesmice (agora eu descasquei mesmo). Assim o é com a navegação da garotada por uma cidade como Teresópolis (tão naturalmente bela e tão degradada pelo fator político): a rapaziada chegar chegando ameaça os encastelados e sobressalta os arrivistas e sicofantas da vida, quando conquistar vai romper com tudo e trazer o belo, o belo popular legítimo.
E a Nara Leão com isso tudo que falei? Oras, capitaneia o movimento do sol sorridente a Srta. Maria Bertoche, que debate os reais problemas sem tergiversar em falácias “moralistas” que mais servem para controlar o povão pelo medo do que por pregar uma sonhada “ordem”, que não há. O símbolo de Nara engloba a precisão do objetivo de dignificar um povo sofrido pelos tais “donos da moral”; isso tudo com tom suave, afinado e melífluo; afinal, para que perder o amor, o sorriso e a flor para o tacape? Quem está na razão está com a força (já dizia o filósofo indiano Obi-Wan Kenobi).
E toda a beleza natural de Teresópolis vai ter seu merecido protagonismo ao sobrepujar o rancor, a frustração e o medo de uma ideologia retrógrada de dominação rasteira de um povo criativo e resistente. Esse sol vai sorrir muito nessa cidade e dela irradiará para o Brasil inteiro.