Vários meios de comunicação ecoaram naqueles dias, de quão bem o governo espanhol havia vendido sua cultura aos líderes da cúpula da OTAN e seus companheiros, em Madri. A frivolidade com que os acontecimentos foram transmitidos foi tamanha que mais pareciam convidados de Fitur[1] ou Arco[2]. Passeio turístico por lá, visita ao museu Rainha Sofia, jantar no Prado para divulgar as delícias da cozinha espanhola, substituindo, claro, a “salada russa” pela “salada tradicional”.

Cinismo e manipulação cultural levados ao clímax

Não sabemos se antes do jantar terão visto as gravuras Os desastres da guerra, de Goya, feitas entre 1810 e 1815, onde o horror da guerra se mostra particularmente cru e penetrante, com seus mortos e assassinos.

Mas a gota d’água partiu da “companheira do monarca”, que não teve escrúpulos em posar com “as companheiras dos líderes” na frente do Guernica de Picasso! Aquela pintura de referência de muitos pacifistas e republicanos, que Picasso fez a pedido do Governo da Segunda República Espanhola para ser exibida no pavilhão espanhol durante a Exposição Internacional de 1937 em Paris! Esse quadro, que é mais uma denúncia dos horrores da guerra, que o pintor havia garantido antes de sua morte em 1973, não seria “devolvido” à Espanha até o fim do regime fascista de Francisco Franco e o retorno da democracia…Seria a democracia da «OTAN desde o início, NÃO» do PSOE dos anos 80?

Como se atrevem a se apropriar de referências culturais de paz e denúncia de guerras? Aqueles que acabaram de apostar no aumento do orçamento de armas e no envio de tropas, o que pode nos levar a uma guerra total! (Veja o artigo de Olga Rodríguez Sobre a militarização das mentes. O anúncio de Biden de enviar mais tropas para a Europa e a definição da China como um “desafio” aos “interesses e valores” da OTAN não são um anúncio de mais paz e sim, um prelúdio para mais tensão. https://www.eldiario.es/opinion/zona-critica/riesgos-cumbre-otan_129_9130663.html)

É para distrair as pessoas de seus feitos? Porque, desde a sua criação em 4 de abril de 1949, a OTAN tem realizado intervenções militares e promovido invasões no mundo para promover mudanças de Governos e ações desestabilizadoras; entre outros Kosovo (1999), Afeganistão (2001), Iraque (2003), Líbia (2011) desdobrando-se como o braço armado internacional dos EUA e seus aliados ocidentais. Hoje está claramente designando a Rússia e a China como ameaças.

Será para deixar de lado a mudança de Sánchez em relação a Marrocos, onde deixou a questão de Melilla “bem resolvida” com algumas mortes, o fato de Macron estar abrindo as portas para a extrema direita e Orban, por sua vez, dando uma canetada nos direitos dos kurdos?

O jornal de direita El Español ousou com a manchete: O espírito do Prado: 40 governantes com Erdogan, Orbán e apenas 5 mulheres unidas pela democracia!

Mas outros ventos estão soprando

Enquanto alguns apostam no rearmamento em detrimento de suas próprias populações, já que isso significa menos investimento em saúde e educação, outros apostam em outro caminho. Alguns dias antes, em Viena, quase sem espaço na mídia, representantes de 65 países signatários do Tratado para a Proibição de Armas Nucleares reuniram-se em um clima de amizade e cooperação graças à campanha do ICAN que avança (cf. https://staging1.pressenza.com/en/2022/06/hope-for-humanity-grows-in-vienna-65-countries-say-no-to-atomic-weapons-in-the-tpnw-declaration/)

Em outros níveis, vários grupos estão trabalhando por uma cultura de paz, fazendo símbolos humanos humildes e sinceros de paz, oficinas de reconciliação, marchas pela paz e pela não violência, etc.. Tentativas que podem parecer grãos de areia, mas que estão mostrando uma profunda aspiração do ser humano.

É claro que devemos reivindicar essa posição comprometida com atos de rebelião não-violenta onde a cultura e a arte podem desempenhar um papel importante; já temos a resposta exemplar da artista Daniela Ortiz que acaba de pedir ao Museu Rainha Sofia a retirada de sua obra por sediar um ato da OTAN “com Guernica ao fundo”.

Nisto é urgente convergir, somar todos nós que estamos nessa sensibilidade para abrir o caminho para a paz, a não violência e a humanização.

Notas
[1] Feira Internacional de Turismo
[2] Feira Internacional de Arte Contemporânea


Martine Sicard é artista plástica, integrante do Mundo sem Guerras e sem Violência, autora do livro ilustrado “Um caminho para a paz e a não violência”, editora Saure

 

Tradução de Verbena Córdula