CRÔNICA
Por Guiherme Maia
Os cachorros sempre foram os melhores amigos dos policiais. Tanto que em qualquer unidade militar podemos vê-lo espreitando de seu canto toda a atividade ao seu redor como um Buda sob a árvore.
Protetor dos que estão em patrulha, seguem os soldados a pé e guardam os pórticos dos batalhões. Estar na companhia de um cachorro é sinônimo de sorte para nós.
Vendo, hoje, minha foto junto com Zacarias, recordo que ao ver um ganso, meu cão sempre desatava a latir de forma que, à distância de duas quadras, já tínhamos noção do que nos aguardava.
Companheiro que Patrulhava à noite comigo, só descansava pela manhã. Zacarias dormia tendo por travesseiro meu coturno. Parecia rir às largas enquanto dormitava encolhido como um refugiado sírio. Aconchegava-se na reentrância dos gelos baianos que serviam simbolicamente de delimitação ao espaço da UPP no Alemão. Não havia segurança alguma para os soldados, mas para Zacarias, em caso de repentina troca de tiros, restava a proteção do concreto.
Esquadrias desarmadas pendentes permitiam a divisa do interior de nossa unidade o que, de fato, tornava-nos alvos em contínuo movimento para teste da precisão dos atiradores inimigos. Eu me sentia reconfortado pela condição de meu cão, mas arrepiava os sentidos de autopreservação a ser a meta dos projéteis adversários.
Assim, sensibilizado pela imagem de meu cão acolhido em um dossel proporcionado pelo meu desgastado coturno, entendi haver apenas dois seres protegidos naquela unidade: Zacarias e o policial que estava na Reserva de Armamentos – única parte da UPP protegida por blindagem.
Resguardar as armas era a única preocupação do Palácio de Laranjeiras; a minha, proteger meu cão.
Fiquei por uns dois meses antes da inauguração das bases da UPP no cerco do Alemão baseado nas entradas para revista de carros e pessoas suspeitas. Ali entendi o abismo do Rio.
Minha guarnição teve o desprazer de reter um traficante corno. Explico: em meio às poças formadas pelo esgoto a céu aberto saído das moradias, logo acima das casas com o feitio de construções regulares e até de arquitetura sofisticada, víamos paredes descamadas, quase nuas, formando um arco cinza sobre nossas cabeças.
Enfim, em meio ao caos urbanístico, apareceu-nos um traficante e este nos deu a informação de que havia um outro traficante evadido da comunidade com alta quantidade de dinheiro em espécie. Não nos deu o porquê e, após explanar a situação, no intuito claro de prejudica-lo frente à UPP, entendi que o indigitado era aquele que tinha possuído sua mulher.
Assim, de forma inusitada, se vingou de um Ricardão entregando-o à UPP. O amante de sua mulher era outro traficante.
Foi assim que conheci Zacarias. Ele ficava me seguindo pelos becos e nesse dia insistiu tanto em ficar junto a mim que não consegui me desvencilhar. Daquele momento em diante estava revelada uma amizade pura, uma cumplicidade de fundição mesmo.
Meu cachorro era sensitivo, fazia a distinção entre cidadãos e gansos de forma tão rápida que nos deixava boquiabertos; ao ver alguém suspeito, pulava ladrando de forma agressiva e muitas vezes não tive como associar a figura atacada com seu histórico criminal.
Zacarias era de uma clarividência sem par.
Haveria alguma idoneidade em Lombroso e o tipo predeterminado fisicamente do criminoso? Não se tratava disso. O que acontecia não era estigmatização de tipos como, simplesmente meu cão identificava suspeitos de forma tão imediata que deixava o Serviço de Inteligência e os P2 no chinelo. Não errava uma. Deixava o SINESP-Cidadão (serviço de pessoas procuradas com mandado de prisão) para trás – sem contar que nosso minicomputador da viatura simplesmente não funcionava.
Zacarias se guiava por um instinto sobrenatural, alguma coisa instigava seu focinho frente à captura olfativa de áureas ofuscadas pelo crime, pelo assassinato. Conhecedor orgânico dos chacras levianos, uma cafungada à distância desvendava o crime cometido, o que não poupa sequer policiais conhecidos. Estes sempre após intensas investigações de IPMs eram identificados e punidos como criminosos fardados.
Como foi o caso de Castrinho, ele havia se engajado na milícia sem ninguém saber até que, por alguma desavença de ponto de vans, matou Ubaldo. Este era seu colega de viatura, mas comandava, pela milícia, o ponto de transporte do Recreio cobiçado pelo colega.
Castrinho foi alvo da fúria de Zacarias em um churrasco da guarnição, churrasco de pão mofado entregue como ração pelo rancho, vinha acompanhado de queijo e presunto (ração fria estragada). Assávamos como forma de reabilitar o alimento para tronar-se comestível simulando um banquete ao estilo gaúcho. Num desses encontros, Zacarias se enfureceu tanto com Castrinho que até gerou burburinho, comentários entre nós.
Passado um mês desse ocorrido, Castrinho, numa ânsia louca de exterminar seu concorrente, foi até à casa de Ubaldo; arrombou a porta; segurou a cabeça da vítima pelo occipital para firmar o alvo de forma tão atabalhoada que terminou por alvejar a própria mão após o tiro atravessar a cabeça da vítima.
Com um buraco na mão, Castrinho se arrastou sofregamente até à UPA do Alemão. Lá atendido, socorrido por um enfermeiro de tez branca e de olhos vermelhos como os de um coelho albino, foi levado a um recanto para que este o interpelasse em sigilo.
– “Você precisa de cocaína para relaxar, isso ajuda a estancar o sangue”. – Disse tão naturalmente que Castrinho pensou fazer parte de algum protocolo de tratado internacional para o atendimento de enfermaria.
– “Tem certeza que isso não é ilegal? Apreendi um traficante semana passada com esse material.” – Ao falar isso, o enfermeiro acabrunhou-se todo e cortou o assunto da conversa abruptamente, sequer deu o cartão com o contato que distribuía a pacientes em situação idêntica com o fito de fornecer o material dado posteriormente.
Castrinho fora preso logo após a recuperação do buraco que havia por descuido provocado em sua mão.
Daquele momento em diante aprendi que Zacarias possuía uma sabedoria instintiva animal quanto à detecção de criminosos e suspeitos. Nunca mais deixei de ouvir seus avisos.
Nessa toada, meu cachorro se tornou um ícone do patrulhamento. Detectava drogas e armas (armamentos utilizados em guerras mundiais totais em meio à área de pacificação) a quilômetros de distância. Por meio dele, apreendemos quilos e quilos. Já chamava a atenção do movimento sua desenvoltura.
Zacarias passou a ser marcado para morrer.
Estávamos na divisa entre uma favela supostamente pacificada e outra ainda sem ocupação. Fazíamos uma busca e apreensão após obtermos uma informação do serviço de inteligência. De repente, saindo de uma viela escura e malfazeja, surge um caminhão com carregamento de frutas, identificado em sua lateral como Maçãs Santa Doroteia.
Devido ao aspecto comum do veículo, não houve motivo para sua revista. Dirigia um velhinho com bigodes bastos e amarelados de nicotina, com óculos bifocais pingentes em seu nariz adunco e brilhante de gordura, figura que poderia muito bem passar como avô de muitos de nós. O motorista se identificou como um policial na ativa em Belford Roxo e que, nos finais de semana, tirava um trocado transportando frutas, além de receber como segurança do carregamento.
Após identificarmos a procedência do que nos disse, liberamos o veículo. Tudo corria bem e na maior paz, quando Zacarias, que já estava inquieto a tempos, desatinou em latidos e uivos pintalgados de agudos e graves. Nunca o tinha visto assim tão possesso.
O motorista ao reconhecer Zacarias, olhando para mim e já entendendo o desenrolar dos avisos do cão, acelerou o caminhão colidindo em carcaças de carros que ladeavam as tiras às quais davam o nome de ruas da Zona do Medo e do Inferno Verde. Não durou dois quarteirões quando abalroou com uma construção irregular de precária moradia e tombou.
Vimos a mistura do lívido vermelho de tomates espremidos pela colisão com o branco da cocaína formando uma massa densa de sangue translúcido, o qual se imiscuía com o chorume à beira dos valões. A dispersão daquela matéria amalgamada irradiava artérias e veias fétidas, provocando asco nos moradores ao redor.
Nesse cenário, o motorista saca de sua Glock com quite rajada aparelhada de carregador alongado (o que potencializa sua letalidade no nível da Guerra da Ucrânia), – obra do lirismo bélico da indústria da morte – e desfere tiros a esmo. Após uma acirrada troca de disparos, conseguimos abater o malfeitor e, com isso, nossa operação foi um daqueles incontáveis sucessos da ilusão da segurança pública.
Comemoramos com abraços e gritos nossa vitória, ri como não o fazia desde quando era garoto na Ilha do Governador. Tudo parecia calmo e sereno demais. Sempre quando sentimos o cheiro agridoce da alegria desconfiamos: havia algo de errado.
Foi quando uma força transcendente me puxou para trás, a força da pureza da amizade e da fidelidade me impingiu a ver uma das cenas mais infelizes de minha vida azeda: Zacarias estava caído por cima de um monte de lixo com suas patas que ora foram sagazes inertes em meio a coisas descartadas, logo ele o protetor de todos nós ali.
Sentindo o vazia como a perda de um membro do meu corpo, ajoelhei e prestei a mais importante guarda de honra e todos os soldados presentes naquela operação empunharam suas armas e desferiram chorosos tiros para o chão.
Zacarias foi um herói.