CRÔNICA

Por Guilherme Maia

 

Rolavam garrafas de Jerobão Veuve pela ampla sala, tilintavam ao encontro dos pés dos móveis Luís XVI, aqueles que Apolônio, o falecido, trouxera de sua estadia em Saint-Paul-de-Vence. Coitado, ela lembrava, tivera febre em um inverno fora do comum para aquelas bandas e, imediatamente, para recuperar-se, foi para Cancun de jatinho.

Aristela Matozinhos ao mesmo tempo que lembrava de seu finado marido, dava-se por satisfeita por poder ser livre sem a sombra daquele velho coronel que fez fortuna traficando entorpecentes do Caribe para a França. Era um homem empreendedor ao passo em que cultivava uma fé cristã à beira da beatitude: caridoso, repartia o lucro que obtinha com a cocaína com obras sociais dos Filhos do Salvador.

Assim passava suas madrugadas bolsonarianas: olhos injetados pela cocaína, velho vício, garrafas do Chanpange de quatro salários mínimos a garrafa; um pegnoir velho e gasto de seu tempo de Miss Copacabana ’54 – Oh, -pensava, – Como tudo mudou com Apolônio em minha vida.

Alcançar os Dois Irmãos com sua mão embriagada sempre foi a alucinação que o psicotrópico lhe causava quando já estava pelas tabelas às cinco da manhã. Estendia a mão como se fosse um elástico e via como um cipó quilométrico seu braço esticado. Assim corriam as últimas horas da madrugada e Aristela enfeitiçada pela imponência do Morro que se projeta das favelas para a Vieira Soto, compactava toda aquela massa côncava de terra e pedra através de suas vastas janelas.

Nisso, surge Leopoldo, o mordomo, com passadas deslizantes como a flutuar pelo Carrara do chão. Vulto discreto, aprendera a ser serviçal à sua dona desde o falecimento de Apolônio, – quando deixou de ser a bonequinha do velho e passou a ser o Tarzan da patroa.

Acerca-se sutilmente de Aristela, abraçando-a, recolhendo sua flacidez com o punho das mãos para, com isso, provocar um sentimento de acolhimento terno e compreensivo.

Esse é o cenário do diálogo que iniciou entre o lacaio e sua possuidora: carreiras de cocaína espalhadas por mesas da realeza a ser guilhotinada da França; janelas amplas, panorâmicas que abrangem do Arpoador aos dois Irmãos; vento cortante da madrugada carioca e Jerobões Veuves a rolar pelo chão.

Ao som, é claro, de Tony Milagres, o mais novo fenômeno gospel de São Fidélis.

– Meu querido Tarzan… – Sussurra Aristela sem entender bem onde está (em que época, a que horas…) – Segura a sua Chita, faz ela feliz…

– Mim estar aqui para fazer Chita feliz! – Tonitruou Leopoldo, mesmo em tom grave mantendo aquela necessária subserviência (o governo já não segurava a inflação e precisava manter a barra de três filhos na Cruzada São Sebastião).

Aristela muda de humor conforme a fluência do junkie lhe joga, agora levanta rápida, mas atabalhoada pelas pelancas que a puxam em sentido inverso devido à velocidade que imprime ao seu movimento.

Posta-se afrente de seu mordomo e, inquisidora, coage-o a responder suas perguntas:

– Diz, seu porco, você não tacava uma bomba atômica ali – aponta para o Vidigal e suas luzes fulgurantes. – Cercava com um murro gigante aqueles vagalumes; numerava todo mundo para controle de massas e ia, depois, eliminando por meio de ordens numéricas? – Diz meu porquinho…. Você não faria isso?

Aquelas palavras causavam asco em Leopoldo, porque aquele era seu mundo e, em sua visão, tudo devia ter um limite; mesmo ele que entendia que o ser humano tem que se virar com o que tem, tem que conquistar o que chega ao seu alcance (era um liberal econômico que não aceitava a permissividade com que homens saíam de mãos dadas na orla de Ipanema); mas não era nazista… O nazismo, ensinaram-lhe os filmes da Sessão da Tarde, era algo de ruim, que reduz as pessoas a objetos.

– Não! Seu porquinho entende que vossa Excelência não pode lançar uma bomba atômica naquela comunidade onde a maioria esmagadora é de pessoas que constroem esse chão onde pisa, esse palacete de propriedades horizontais onde vive. Sem eles não teria nnda aqui: tudo foi construído com as mãos que acendem as luzes que a incomodam tanto… – Tentou chamar à razão a velha cocainômana.

– Tanto esforço deve estar cansando meu subalterno…. Tantas palavras ditas assim em seguida devem tomar todo o fôlego do “Fome Zero”, do “Bolsa Família” aí. Você não passa de um criado, seu negro, e dê graças a Deus de eu e meu falecido Apolônio termos pago pelos seus serviços!

De repente, a cocaína parecia ter diluído seu efeito e Aristela pensava como uma predestinada deslumbrada mais uma vez. Aquilo provocava mais revolta no íntimo de Leopoldo e suas necessidades sempre falavam alto. Sorriu amarelo para sua dona e mais uma vez tentou trazer alguma razão àquele pandemônio abençoado das madrugadas da Vieira Soto.

– Amanhã tenho que acordar às quatro horas da tarde para encontrar com as Irmãs do Senhor Salvador, por favor limpe as aleias do meu nariz não posso aparecer com pó escorrendo como da última vez, isso chama a atenção!

– Claro, senhora!

– Afinal, do pó viemos e ao pó voltaremos… hahahaha- começou a rir histericamente como um vampiro da Central do Brasil a dondoca da Vieira. – Eu sou uma cidadã de bem, meu caro, por isso faço o que quiser; sou abençoada pelo direito divino de fazer o que quiser! – Em tom nostálgico: – Lembra daquela vez que joguei ovos nos peões que chegavam para construir o prédio aqui do lado…. Como era bom ver a reação deles e saber que iam suar embalsamados no que o cú da galinha nos proporciona… Hahaha – De novo o Drácula do Campo de Santana tomava conta daquele corpo carcomido pelas drogas e a fadiga de quem já fora salvo desde a criação pelo Deus de Calvino e isso sobrepunha a razão humana àquela mulher.

– Minha Senhora, peço que pondere e se acalme… vamos dormir, é o que pede a sua saúde. Venha, vou lhe fazer cafuné e chuparei o seu grelo. – Tentava Leopoldo garantir seu tempo de sono após a Desgraçada dormir.

– Não! Eu quero jogar sacos de merda nos “proletas” que passam lá embaixo quando chega seis da matina…. É o pessoal que eu gosto mais de escrachar. Até parece que os travecos têm concorrência, esses riem do castigo que eu, predestinada de deus, inflijo a eles; imagina que outro dia, eu jogava minhas fezes em sacos plásticos na calçada e um desses “invertidos” que nunca alcançarão a graça de deus vinha passando; ele pegou o saco estourado com as fezes, olhou para cima e mandou um beijo daqueles molhados, crispou aqueles lábios carnudos e estalou para mim uma bitoca como se fosse amor mártir voltado para mim. Enojada, sumi nas sombras de minha mansão horizontal.

– Você sabe que Apolônio começou sua fortuna dominando o suprimento aqui para Copacabana e acabou por ser o grande fornecedor da Europa Ocidental, ele sabia o que fazer porque era um self-made man. E cresceu enfrentando todas as forças contrárias; conseguiu seus contatos no Congresso, conseguiu comunicação com o Senado dos States. Era um herói da mediocridade popular brasileira.

– Ah… se Apolônio tivesse conseguido o apoio necessário para explodir a Adutora do Guandu, mas seus companheiros eram fracos e não tiveram coragem de acompanhar a detenção de dois coitados que após receberem uns cruzeiros aceitaram participar do atentado e depois arregraram para polícia.

E continuou como hipnotizada pelo infinito do amor-próprio:

– Aliciar policiais dos Estados sempre foi a tática do candidato da milícia, filhinha querida dos esquadrões da Morte, agora isso o estava desgastando. Fui eu quem falei para focar na segurança comunitária dos bairros da Tijuca e do Estácio.

– Minha boneca, meu vício é você – Afirmava Leopoldo com contida repugnância (Aristela lembrava sua avó, tinha o mesmo arqueio de sobrancelhas e linhas dos lábios); porém, não podia perder a deixa para adular sua patroa, era em momentos assim de autocomiseração que ela ficava sugestiva. Tomando um ar de canastrão de novela das oito entonou a voz: – Sou eu que fingi me enganar, cansei de beijar outras mulheres pensando em ti, meu amor.

– Ai, Leopoldo, – derretida, fala Aristela: – Que o orgulho não mate nossos sonhos de amor…. Olha, meu fiel servo… seu gostoso hi,hi,hi… Estou encharcada e chapada, o amor reforça a cocaína. – Mudando de humor como uma esquizofrênica em surto na Uruguaiana: – Me bate, Leopoldo! Me arrebenta! Hahaha!

Naquele momento o mordomo servil sentiu assomar em seu íntimo toda a amargura do enclave dos desprovidos da Cruzada São Sebastião – aquele grito de concreto que joga na cara do Leblon o Brasil e sua violenta exclusão, – era um sentimento ancestral contra Casas-Grandes e impérios; encarnava índios e negros e gays e mulheres: com tudo isso, sentou um forte espalmado tapa na cara daquela mulher, símbolo da opressão de seu povo e de seu país.

Aristela deu duas voltas antes de bater com a cabeça na quina da mesa central de Jacarandá (traficado da Amazônia por um antigo general conhecido de Apolônio).

Sem respiração ou batimentos cardíacos: Está morta, gritou abafado o servo.

Agravava aquela situação mórbida aquele sorriso de gozo extasiado que imprimia Aristela em sua face. Morta com todo o prazer…

– Essa desgraçada morreu! Eu não queria, não entendo o que se apossou de mim, aquele ódio todo, aquelas imagens estranhas de escravos em calças brancas iguais às figuras de meus livros de História do tempo de escola; homens horrorosos e deformados humilhando mulheres submissas; índios queimados e devorados pelos portugueses e espanhóis do tempo da colonização. – Aturdido considerava a realidade da morte à sua frente.

Leopoldo transido pela culpa sentou numa cadeira estilo Tudor, apoiando sua cabeça no recosto de entalhes tão rococós que lhe furavam a nuca. Vinha do corpo inerte um cheiro acre de fezes, nada incomodava o assassino pois estava ensimesmado e se punha a recordações de Aristela.

– Seu merda! – Vinha na mente do lacaio a voz de sua dona, envolvida em lembranças de um tempo de maltrato e humilhações, tempo anterior ao seu envolvimento sexual com a velha morta; tempos em que tinha que comer o velho Apolônio, o traficante cidadão de bem e pretenso terrorista de matiz bolsonarista.

E continuava ribombando a voz da morta: – Você é um merda de servo! Sabe que meu Jerobão Veuve tem que estar a 12 graus centígrados e as minhas carreiras de cocaína são cheias no meio; e canudos de notas de cem dólares sempre! Mais um erro desse e eu te meto a porrada com minha bengala!

– Mas, minha senhora, como poderia prever isso? Ao menos preciso de orientações, certo? – Redarguia Leopoldo submisso.

– Cala a boca, seu negro pobre! Você me pertence e bico calado, você usufrui da fortuna a que meu Apolônio foi abençoado pela predestinação sagrada dos abençoadas de deus…. Você não é escolhido, você é subalterno espiritual aos ungidos e isso está em Romanos 8:28-30 e Efésios 1:4-5, ignorante. Soli Deo Glori, servo! Agora enche essa travessa de ouro com as fileiras de coca, rápido!

Leopoldo punha em xeque sua recriminação: – Ela mereceu meu tapa? Ela foi horrível, enriqueceu com o tráfico de cocaína, vivia em orgias, pensava em tacar uma bomba atômica no Vidigal e, por isso, votou no Cara de Frango Louco desde o início de sua carreira e, pior, o marido falecido queria envenenar as adutoras do Guandu junto com o Cara de Frango…. São horríveis: são a elite brasileira!

Por outro lado, sua moral de cristianismo plebeu o recriminava: ninguém além de deus poderia tirar a vida de um ser humano.

– Animal imundo, sempre deixe as janelas abertas à noite! Gosto de me refrescar de madrugada enquanto penso numa forma de eliminar aquelas luzes dos vagabundos no entorno do Dois Irmãos! – Mais falas perdidas de um passado nazifascista que tomou conta da vida de Leopoldo por causa de sua necessidade, de seus filhos e de sua esposa…

– Morra, sua vaca nazista! – Esbravejou com esta última lembrança. Aquela velha era o vício, o mal, encarnado: que morresse a desgraçada!

Naquele momento a velha começou a mexer a ponta dos dedos e a balbuciar grunhidos.

Leopoldo sentindo o poder por que a quase-morte da maldita lhe conferia soube que naquele momento a “força estava com ele”, ele matava de vez ou não aquela podre criatura.

Pensou em sua necessidade, em seus filhos e esposa; pensou na precariedade da Cruzada São Sebastião. Mas, sobretudo, pensou nas palavras incisivas da velha (agora entre a vida e a morte). Pensou no nazismo tropical, tão diluído, tão hipócrita, que mal se percebia. Ela resumia a maldosa exclusão brasileira…. Mas ser bom, ser correto, é o objetivo do bom cristão, daquele que se guia pelo amor e a solidariedade (assim lhe foi ensinado nos tempos de catequese no colégio) !

-Mato ou não mato essa escrota?

Aristela já reunia forças suficientes para virar sua cabeça numa inspiração inata de sobrevivência.

Leopoldo desferiu um chute na cara da velha. O seu remorso era o do povo brasileiro, faminto e marginalizado por ricos traficantes permissiosos como aquela mulher.

– Morra! – Tartamudeava para convencer-se – Não! Você ficará bem! – Logo em seguida, recompunha sua base moral de cristão plebeu.

Leopoldo se levantou; recolheu Aristela em seus braços e chamou o Doutor Furingo, o médico dela.